Belo Horizonte, 28 de julho de 1942.
Meu caro Mário,
Estou te escrevendo rapidamente, se bem que haja muitíssima coisa que eu quero te falar (a respeito da Conferência, que acabei de ler agora). Vem-me uma vontade imensa de desabafar com você tudo o que ela me fez sentir. Mas é longo, não tenho o direito de tomar seu tempo e te chatear.
Fernando Sabino.
No texto, o conectivo “se bem que” estabelece relação de
a) |
conformidade. |
b) |
condição. |
c) |
concessão. |
d) |
alternância. |
e) |
consequência. |
O conectivo “se bem que” estabelece relação de “concessão” entre os períodos em questão: “Estou te escrevendo rapidamente, se bem que haja muitíssima coisa que eu quero te falar”. A substituição pelos conectivos “embora” e “apesar de”, mais facilmente identificáveis como concessivos, é perfeitamente possível. Além disso, semanticamente, a concessão fica evidente, pois há quebra de expectativa entre os períodos: há muito o que falar, mas o narrador escreve rapidamente.
Desde pequeno, tive tendência para personificar as coisas. Tia Tula, que achava que mormaço fazia mal, sempre gritava: “Vem pra dentro, menino, olha o mormaço!” Mas eu ouvia o mormaço com M maiúsculo. Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças! Ia pra dentro logo. E ainda hoje, quando leio que alguém se viu perseguido pelo clamor público, vejo com estes olhos o Sr. Clamor Público, magro, arquejante, de preto, brandindo um guarda-chuva, com um gogó protuberante que se abaixa e levanta no excitamento da perseguição. E já estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns trinta anos, quando me fui, com um grupo de colegas, a ver o lançamento da pedra fundamental da ponte Uruguaiana-Libres, ocasião de grandes solenidades, com os presidentes Justo e Getúlio, e gente muita, tanto assim que fomos alojados os do meu grupo num casarão que creio fosse a Prefeitura, com os demais jornalistas do Brasil e Argentina. Era como um alojamento de quartel, com breve espaço entre as camas e todas as portas e janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e duvidosos encantos de uma coletividade democrática. Pois lá pelas tantas da noite, como eu pressentisse, em meu entredormir, um vulto junto à minha cama, sentei-me estremunhado* e olhei atônito para um tipo de chiru*, ali parado, de bigodes caídos, pala pendente e chapéu descido sobre os olhos. Diante da minha muda interrogação, ele resolveu explicar-se, com a devida calma:
— Pois é! Não vê que eu sou o sereno...
Mário Quintana, As cem melhores crônicas brasileiras.
*Glossário:
estremunhado: mal acordado.
chiru: que ou aquele que tem pele morena, traços acaboclados (regionalismo: Sul do Brasil).
No início do texto, o autor declara sua “tendência para personificar as coisas”. Tal tendência se manifesta na personificação dos seguintes elementos:
a) |
Tia Tula, Justo e Getúlio. |
b) |
mormaço, clamor público, sereno. |
c) |
magro, arquejante, preto. |
d) |
colegas, jornalistas, presidentes. |
e) |
vulto, chiru, crianças. |
Conforme se verifica em:
Linhas 4 a 5 – eu ouvia o mormaço com M maiúsculo / para mim era um velho que pegava crianças
Linha 8 – o Sr. Clamor público, magro, arquejante, de preto, brandindo um guarda-chuva (...)
Linhas 24 a 29 - ali parado, de bigodes caídos, (...) ele resolveu explicar-se, com a devida calma: – pois é! Não vê que eu sou o sereno...
Desde pequeno, tive tendência para personificar as coisas. Tia Tula, que achava que mormaço fazia mal, sempre gritava: “Vem pra dentro, menino, olha o mormaço!” Mas eu ouvia o mormaço com M maiúsculo. Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças! Ia pra dentro logo. E ainda hoje, quando leio que alguém se viu perseguido pelo clamor público, vejo com estes olhos o Sr. Clamor Público, magro, arquejante, de preto, brandindo um guarda-chuva, com um gogó protuberante que se abaixa e levanta no excitamento da perseguição. E já estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns trinta anos, quando me fui, com um grupo de colegas, a ver o lançamento da pedra fundamental da ponte Uruguaiana-Libres, ocasião de grandes solenidades, com os presidentes Justo e Getúlio, e gente muita, tanto assim que fomos alojados os do meu grupo num casarão que creio fosse a Prefeitura, com os demais jornalistas do Brasil e Argentina. Era como um alojamento de quartel, com breve espaço entre as camas e todas as portas e janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e duvidosos encantos de uma coletividade democrática. Pois lá pelas tantas da noite, como eu pressentisse, em meu entredormir, um vulto junto à minha cama, sentei-me estremunhado* e olhei atônito para um tipo de chiru*, ali parado, de bigodes caídos, pala pendente e chapéu descido sobre os olhos. Diante da minha muda interrogação, ele resolveu explicar-se, com a devida calma:
— Pois é! Não vê que eu sou o sereno...
Mário Quintana, As cem melhores crônicas brasileiras.
*Glossário:
estremunhado: mal acordado.
chiru: que ou aquele que tem pele morena, traços acaboclados (regionalismo: Sul do Brasil).
A caracterização ambivalente da “coletividade democrática”, feita com humor pelo cronista, ocorre também na seguinte frase relativa à democracia:
a) |
Meu ideal político é a democracia, para que todo homem seja respeitado como indivíduo, e nenhum, venerado. (A. Einstein)
|
b) |
A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais. (W. Churchill)
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c) |
A democracia é apenas a substituição de alguns corruptos por muitos incompetentes. (B. Shaw)
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d) |
É uma coisa santa a democracia praticada honestamente, regularmente, sinceramente. (Machado de Assis)
|
e) |
A democracia se estabelece quando os pobres, tendo vencido seus inimigos, massacram alguns, banem os outros e partilham igualmente com os restantes o governo e as magistraturas. (Platão)
|
É muito importante ler com atenção o enunciado, que solicita que o candidato assinale a alternativa em que ocorre uma caracterização ambivalente, ou seja, que aponte, ao mesmo tempo, para duas direções. A ambivalência de “coletividade democrática” é observada no trecho em que aparece no texto: “Era como um alojamento de quartel, com breve espaço entre as camas e todas as portas e janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e duvidosos encantos de uma coletividade democrática.” A ambivalência encontra-se nos “duvidosos encantos” que essa “coletividade democrática” apresenta, pois o encanto denota algo positivo, mas o fato de ser duvidoso questiona a veracidade dessa caracterização. Fenômeno semelhante ocorre apenas na alternativa b, segundo a qual “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais.”, ou seja, afirma-se que a democracia é a pior forma de governo, mas ao mesmo tempo afirma-se o contrário ao admitir que todas as demais é que o são.
Desde pequeno, tive tendência para personificar as coisas. Tia Tula, que achava que mormaço fazia mal, sempre gritava: “Vem pra dentro, menino, olha o mormaço!” Mas eu ouvia o mormaço com M maiúsculo. Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças! Ia pra dentro logo. E ainda hoje, quando leio que alguém se viu perseguido pelo clamor público, vejo com estes olhos o Sr. Clamor Público, magro, arquejante, de preto, brandindo um guarda-chuva, com um gogó protuberante que se abaixa e levanta no excitamento da perseguição. E já estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns trinta anos, quando me fui, com um grupo de colegas, a ver o lançamento da pedra fundamental da ponte Uruguaiana-Libres, ocasião de grandes solenidades, com os presidentes Justo e Getúlio, e gente muita, tanto assim que fomos alojados os do meu grupo num casarão que creio fosse a Prefeitura, com os demais jornalistas do Brasil e Argentina. Era como um alojamento de quartel, com breve espaço entre as camas e todas as portas e janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e duvidosos encantos de uma coletividade democrática. Pois lá pelas tantas da noite, como eu pressentisse, em meu entredormir, um vulto junto à minha cama, sentei-me estremunhado* e olhei atônito para um tipo de chiru*, ali parado, de bigodes caídos, pala pendente e chapéu descido sobre os olhos. Diante da minha muda interrogação, ele resolveu explicar-se, com a devida calma:
— Pois é! Não vê que eu sou o sereno...
Mário Quintana, As cem melhores crônicas brasileiras.
*Glossário:
estremunhado: mal acordado.
chiru: que ou aquele que tem pele morena, traços acaboclados (regionalismo: Sul do Brasil).
Considerando que “silepse é a concordância que se faz não com a forma gramatical das palavras, mas com seu sentido, com a ideia que elas representam”, indique o fragmento em que essa figura de linguagem se manifesta.
a) |
“olha o mormaço”.
|
b) |
“pois devia contar uns trinta anos”.
|
c) |
“fomos alojados os do meu grupo”.
|
d) |
“com os demais jornalistas do Brasil”.
|
e) |
“pala pendente e chapéu descido sobre os olhos”.
|
a) Incorreta. Pois, apresenta uma concordância conforme a prescrição da norma padrão: verbo transitivo direto + artigo definido masculino singular + objeto direto (também no masculino e singular).
b) Incorreta. Pois, a concordância de quando me fui está gramaticalmente de acordo com o sujeito eu (oculto na frase)
c) Correta. Pois, na ordem direta teríamos a seguinte frase: os do meu grupo fomos alojados. Nesse caso, a concordância padrão determinaria o verbo ir flexionado na 3ª pessoa (foram). No entanto, o redator optou por uma silepse de pessoa, e utilizou a flexão na 1ª pessoa do plural. Em termos semânticos, tal escolha inclui o enunciador dentre as pessoas do referido grupo.
d) Incorreta. Pois, no contexto, tal frase dá continuidade ao seguinte trecho: fomos alojados (...) com os demais jornalistas do Brasil. Portanto, não apresenta nenhum estranhamento quanto à concordância.
e) Incorreta. Pois, na frase, pala pendente e chapéu descido sobre os olhos a concordância foi feita com o termo mais próximo. Escolha rigorosamente fundamentada pela norma padrão.
Desde pequeno, tive tendência para personificar as coisas. Tia Tula, que achava que mormaço fazia mal, sempre gritava: “Vem pra dentro, menino, olha o mormaço!” Mas eu ouvia o mormaço com M maiúsculo. Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças! Ia pra dentro logo. E ainda hoje, quando leio que alguém se viu perseguido pelo clamor público, vejo com estes olhos o Sr. Clamor Público, magro, arquejante, de preto, brandindo um guarda-chuva, com um gogó protuberante que se abaixa e levanta no excitamento da perseguição. E já estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns trinta anos, quando me fui, com um grupo de colegas, a ver o lançamento da pedra fundamental da ponte Uruguaiana-Libres, ocasião de grandes solenidades, com os presidentes Justo e Getúlio, e gente muita, tanto assim que fomos alojados os do meu grupo num casarão que creio fosse a Prefeitura, com os demais jornalistas do Brasil e Argentina. Era como um alojamento de quartel, com breve espaço entre as camas e todas as portas e janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e duvidosos encantos de uma coletividade democrática. Pois lá pelas tantas da noite, como eu pressentisse, em meu entredormir, um vulto junto à minha cama, sentei-me estremunhado* e olhei atônito para um tipo de chiru*, ali parado, de bigodes caídos, pala pendente e chapéu descido sobre os olhos. Diante da minha muda interrogação, ele resolveu explicar-se, com a devida calma:
— Pois é! Não vê que eu sou o sereno...
Mário Quintana, As cem melhores crônicas brasileiras.
*Glossário:
estremunhado: mal acordado.
chiru: que ou aquele que tem pele morena, traços acaboclados (regionalismo: Sul do Brasil).
No contexto em que ocorre, a frase “estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns trinta anos” constitui
a) |
recurso expressivo que produz incoerência, uma vez que não se usa o adjetivo “grande” no diminutivo.
|
b) |
exemplo de linguagem regional, que se manifesta também em outras partes do texto, como na palavra “brandindo”.
|
c) |
expressão de nonsense (linguagem surreal, ilógica), que, por sinal, ocorre também quando o autor afirma ouvir o M maiúsculo de “mormaço”.
|
d) |
manifestação de humor irônico, o qual, aliás, corresponde ao tom predominante no texto.
|
e) |
parte do sonho que está sendo narrado e que é revelado apenas no final do texto, principalmente no trecho “em meu entredormir”.
|
a) Incorreta. O uso do adjetivo “grande” no diminutivo é possível em várias situações, como para denotar carinho ou, que é o caso do texto, ironia.
b) Incorreta. Não se trata de regionalismo, que seria o uso de termos apenas em determinadas localidades geográficas.
c) Incorreta. Nem o uso do diminutivo no trecho é ilógico, tampouco o M maiúsculo em “Mormaço”, cuja aplicação deve-se à personificação do termo.
d) Correta. A ironia do trecho em questão (estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns trinta anos) ocorre ao se usar o adjetivo grande no diminutivo, como se fosse apenas “um pouquinho” grande. Contudo, um homem de 30 anos é certamente grande, adulto, plenamente formado. O objetivo é o mesmo que perpassa todo o texto: tecer humor com ironia. É o que se observa, também, em “duvidosos encantos de uma coletividade democrática”. Trata-se de um humor nada ingênuo, mas ácido.
e) Incorreta. O texto não narra um sonho do narrador, mas suas lembranças do passado, da infância.
Leia esta notícia científica:
Há 1,5 milhão de anos, ancestrais do homem moderno deixaram pegadas quando atravessaram um campo lamacento nas proximidades do Ileret, no norte do Quênia. Uma equipe internacional de pesquisadores descobriu essas marcas recentemente e mostrou que elas são muito parecidas com as do “Homo sapiens”: o arco do pé é alongado, os dedos são curtos, arqueados e alinhados. Também, o tamanho, a profundidade das pegadas e o espaçamento entre elas refletem a altura, o peso e o modo de caminhar atual. Anteriormente, houve outras descobertas arqueológicas, como, por exemplo, as feitas na Tanzânia, em 1978, que revelaram pegadas de 3,7 milhões de anos, mas com uma anatomia semelhante à de macacos. Os pesquisadores acreditam que as marcas recém-descobertas pertenceram ao “Homo erectus”.
Revista FAPESP, nº 157, março de 2009. Adaptado.
No texto, a sequência temporal é estabelecida principalmente pelas expressões:
a) |
“Há 1,5 milhão de anos”; “recentemente”; “anteriormente”.
|
b) |
“ancestrais”; “moderno”; “proximidades”.
|
c) |
“quando atravessaram”; “norte do Quênia”; “houve outras descobertas”.
|
d) |
“marcas recém-descobertas”; “em 1978”; “descobertas arqueológicas”.
|
e) |
“descobriu”; “mostrou”; “acreditam”.
|
Uma “sequência temporal” é estabelecida por meio de advérbios, locuções adverbiais ou orações subordinadas adverbiais, de tempo. Tais recursos só são devidamente apresentados na alternativa A, com a locução “Há 1,5 milhões de anos” e os advérbios “recentemente” e “anteriormente”. As outras alternativas apresentam, por exemplo, também substantivos (ancestrais, proximidades, marcas recém-descobertas, descobertas arqueológicas), adjetivos (moderno; descobertas arqueológicas) e verbos (descobriu, mostrou, acreditam). É verdade que os tempos verbais também definem, às vezes, sequências temporais, mas não é o que se observa no texto em questão, pois não estão relacionados à passagem histórica do tempo.
Leia esta notícia científica:
Há 1,5 milhão de anos, ancestrais do homem moderno deixaram pegadas quando atravessaram um campo lamacento nas proximidades do Ileret, no norte do Quênia. Uma equipe internacional de pesquisadores descobriu essas marcas recentemente e mostrou que elas são muito parecidas com as do “Homo sapiens”: o arco do pé é alongado, os dedos são curtos, arqueados e alinhados. Também, o tamanho, a profundidade das pegadas e o espaçamento entre elas refletem a altura, o peso e o modo de caminhar atual. Anteriormente, houve outras descobertas arqueológicas, como, por exemplo, as feitas na Tanzânia, em 1978, que revelaram pegadas de 3,7 milhões de anos, mas com uma anatomia semelhante à de macacos. Os pesquisadores acreditam que as marcas recém-descobertas pertenceram ao “Homo erectus”.
Revista FAPESP, nº 157, março de 2009. Adaptado.
No trecho “semelhante à de macacos”, fica subentendida uma palavra já empregada na mesma frase. Um recurso linguístico desse tipo também está presente no trecho assinalado em:
a) |
A água não é somente herança de nossos predecessores; ela é, sobretudo, um empréstimo às futuras gerações.
|
b) |
Recorrer à exploração da miséria humana, infelizmente, está longe de ser um novo ingrediente no cardápio da tevê aberta à moda brasileira.
|
c) |
Ainda há quem julgue que os recursos que a natureza oferece à humanidade são, de certo modo, inesgotáveis.
|
d) |
A prática do patrimonialismo acaba nos levando à cultura da tolerância à corrupção.
|
e) |
Já está provado que a concentração de poluentes em área para não fumantes é muito superior à recomendada pela OMS.
|
a) Incorreta. Em tal frase não há omissão de termo algum. Embora a água tenha sido retomada semanticamente, tal retomada foi feita explicitamente pelo pronome ela.
b) Incorreta. Em tal frase não há omissão de termo algum. Embora “à moda brasileira” faça referência a “exploração da miséria humana”, o faz no sentido de especificar e não há nenhum termo omitido.
c) Incorreta. O único termo omitido (recursos) não aparece no trecho sublinhado e sim em “[recursos] inesgotáveis”.
d) Incorreta. Embora seja possível (em termos estritamente sintáticos) supor uma omissão do termo cultura (em “tolerância à [cultura] da corrupção”) tal construção implicaria em alteração semântica.
e) Correta. A palavra omitida (anteriormente citada na mesma frase) foi concentração.
[José Dias] Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. “Esta é a melhor apólice”, dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos polos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.
Machado de Assis, Dom Casmurro.
No texto, o narrador diz que José Dias “sabia opinar obedecendo”. Considerada no contexto da obra, essa característica da personagem é motivada, principalmente, pelo fato de José Dias ser
a) |
um homem culto, porém autodidata.
|
b) |
homeopata, mas usuário da alopatia.
|
c) |
pessoa de opiniões inflexíveis, mas também um homem naturalmente cortês.
|
d) |
um homem livre, mas dependente da família proprietária.
|
e) |
católico praticante e devoto, porém perverso.
|
a) Incorreta. O que aparece mencionado nesta alternativa se refere mais diretamente à influencia exercida por José Dias do que sua situação na casa, que modalizava tal influência
b) Incorreta. O que se afirma nesta alternativa expressa a dissimulação de José Dias (certa discrepância entre o que ele fala – ao aproximar-se da família – e o que faz, depois de muito tempo usufruindo da condição de agregado)
c) Incorreta. Tal alternativa além de apresentar certa contradição não se justifica pela caracterização apresentada para o personagem na obra citada.
d) Correta. Tal alternativa apresenta uma explicação sucinta para o conceito de agregado. É exatamente esta a condição de José Dias junto à casa e à família de Bento.
e) Incorreta. Tal alternativa não apresenta uma caracterização do personagem José Dias condizente com a que é feita na obra citada.
[José Dias] Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. “Esta é a melhor apólice”, dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido, abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar dos efeitos do calor e do frio, dos polos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.
Machado de Assis, Dom Casmurro.
Considerado o contexto, qual das expressões sublinhadas foi empregada em sentido metafórico?
a) |
“Teve um pequeno legado”.
|
b) |
“Esta é a melhor apólice”.
|
c) |
“certa audiência, ao menos”.
|
d) |
“ao cabo, era amigo”.
|
e) |
“o bastante para divertir”.
|
O sentido metafórico constrói-se quando o texto foge de seu sentido real, denotativo, migrando para um sentido figurado, conotativo. Todas as alternativas apresentam trechos cujo sentido é literal, com exceção da B. O termo apólice surge metaforicamente no trecho dado porque não carrega consigo seu sentido de dicionário (documento comercial), mas seu significado desliza segundo o contexto. Tal fala parte da personagem José Dias, agregado da família de Bentinho: “Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. ‘Esta é a melhor apólice’, dizia ele muita vez”. Observe que o termo apólice surge primeiramente em seu sentido denotativo, como parte da herança de Pedro, pai de Bentinho, a José Dias. Este, contudo, de forma condizente com sua condição de agregado da família, faz questão de demonstrar seu apreço por ela ao valorizar mais as “quatro palavras de louvor” que recebeu do que a apólice propriamente. Segundo o narrador Bento Santiago, tal frase (Está e a melhor apólice) é proferida pelo agregado diversas vezes, como que pela necessidade de se fazer agradecido por não ter laços consanguíneos com a família de D. Glória.
Por caminhos diferentes, tanto Pedro Bala (de Capitães de areia, de Jorge Amado) quanto o operário (do conhecido poema “O operário em construção”, de Vinícius de Moraes) passam por processos de “aquisição de uma consciência política” (expressão do próprio Vinícius). O contexto dessas obras indica também que essa conscientização leva ambos à
a) |
exclusão social, que arruína precocemente suas promissoras carreiras profissionais.
|
b) |
sublimação intelectual do ímpeto revolucionário, motivada pelo contato com estudantes.
|
c) |
condição de meros títeres, manipulados por partidos políticos oportunistas.
|
d) |
luta, em associação com seus pares de grupo ou de classe social, contra a ordem vigente.
|
e) |
cumplicidade com criminosos comuns, com o fito de atacar as legítimas forças de repressão.
|
a) Incorreta, pois, conforme os preceitos comunistas, que influenciam os dois autores, a conscientização serve justamente de arma contra a exclusão social.
b) Incorreta, pois, a referida obra de Jorge Amado, bem como a segunda parte da Antologia Poética de Vinícius de Moraes, da qual o poema citado fora extraído representam uma guinada materialista e socialista. Ou seja, uma busca por soluções calcadas num engajamento e numa conscientização ideologicamente revolucionária e não em qualquer forma de sublimação
c) Incorreta, pois a consciência política referida no enunciado distancia os seres da condição de títeres (marionetes), citada nesta alternativa.
d) Correta, afinal, nas duas obras referidas, tal consciência política se dá na percepção da realidade comum aos integrantes dos grupos, aos quais pertencem: o operário (no poema de Vinícius de Moraes) e Pedro Bala (no romance de Jorge Amado).
e) Incorreta. Pois, não se justifica o que se afirma em tal alternativa em nenhuma das obras citadas.