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Questão 23 1ª fase

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Questão 23

Pressupostos e Subentendidos

Desde pequeno, tive tendência para personificar as coisas. Tia Tula, que achava que mormaço fazia mal, sempre gritava: “Vem pra dentro, menino, olha o mormaço!” Mas eu ouvia o mormaço com M maiúsculo. Mormaço, para mim, era um velho que pegava crianças! Ia pra dentro logo. E ainda hoje, quando leio que alguém se viu perseguido pelo clamor público, vejo com estes olhos o Sr. Clamor Público, magro, arquejante, de preto, brandindo um guarda-chuva, com um gogó protuberante que se abaixa e levanta no excitamento da perseguição. E já estava devidamente grandezinho, pois devia contar uns trinta anos, quando me fui, com um grupo de colegas, a ver o lançamento da pedra fundamental da ponte Uruguaiana-Libres, ocasião de grandes solenidades, com os presidentes Justo e Getúlio, e gente muita, tanto assim que fomos alojados os do meu grupo num casarão que creio fosse a Prefeitura, com os demais jornalistas do Brasil e Argentina. Era como um alojamento de quartel, com breve espaço entre as camas e todas as portas e janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e duvidosos encantos de uma coletividade democrática. Pois lá pelas tantas da noite, como eu pressentisse, em meu entredormir, um vulto junto à minha cama, sentei-me estremunhado* e olhei atônito para um tipo de chiru*, ali parado, de bigodes caídos, pala pendente e chapéu descido sobre os olhos. Diante da minha muda interrogação, ele resolveu explicar-se, com a devida calma:

— Pois é! Não vê que eu sou o sereno...

Mário Quintana, As cem melhores crônicas brasileiras.

*Glossário:

estremunhado: mal acordado.

chiru: que ou aquele que tem pele morena, traços acaboclados (regionalismo: Sul do Brasil).


A caracterização ambivalente da “coletividade democrática”, feita com humor pelo cronista, ocorre também na seguinte frase relativa à democracia:



a)
Meu ideal político é a democracia, para que todo homem seja respeitado como indivíduo, e nenhum, venerado. (A. Einstein)
b)
A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais. (W. Churchill)
c)
A democracia é apenas a substituição de alguns corruptos por muitos incompetentes. (B. Shaw)
d)
É uma coisa santa a democracia praticada honestamente, regularmente, sinceramente. (Machado de Assis)
e)
A democracia se estabelece quando os pobres, tendo vencido seus inimigos, massacram alguns, banem os outros e partilham igualmente com os restantes o governo e as magistraturas. (Platão)
Resolução

É muito importante ler com atenção o enunciado, que solicita que o candidato assinale a alternativa em que ocorre uma caracterização ambivalente, ou seja, que aponte, ao mesmo tempo, para duas direções. A ambivalência de “coletividade democrática” é observada no trecho em que aparece no texto: “Era como um alojamento de quartel, com breve espaço entre as camas e todas as portas e janelas abertas, tudo com os alegres incômodos e duvidosos encantos de uma coletividade democrática.” A ambivalência encontra-se nos “duvidosos encantos” que essa “coletividade democrática” apresenta, pois o encanto denota algo positivo, mas o fato de ser duvidoso questiona a veracidade dessa caracterização. Fenômeno semelhante ocorre apenas na alternativa b, segundo a qual “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais.”, ou seja, afirma-se que a democracia é a pior forma de governo, mas ao mesmo tempo afirma-se o contrário ao admitir que todas as demais é que o são.