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Questão 10 1ª fase

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Questão 10

Interpretação de Textos

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á generosamente” – ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

(Contos: uma antologia, 1998.)


A perspectiva do narrador diante das situações e dos fatos relacionados à escravidão é marcada, sobretudo,



a)
a) pela indignação.
b)
b) pelo entusiasmo.
c)
c) pela ironia.
d)
d) pela indiferença.
e)
e) pelo saudosismo.
Resolução

a) Incorreta. Não há elementos textuais suficientes para que se possa afirmar que os fatos são narrados com indignação, pois não há um posicionamento explícito do narrador em relação às práticas relatadas.

b) Incorreta. O tom adotado pelo narrador não é de entusiasmo, uma vez que o relato não tem como objetivo enaltecer as ações relacionadas à captura ou à fuga de escravos.

c) Correta. O narrador apresenta um tom irônico ao relatar o tratamento dispensado aos escravos em diversas situações, como os castigos e as tentativas de captura. Em passagens como “e nem todos [os escravos] gostavam da escravidão” e “e nem todos [os escravos] gostavam de apanhar pancada” a ironia fica evidente, uma vez que estão sendo afirmadas posições claramente verdadeiras, mas colocadas como se pudessem ser contestadas.

d) Incorreta. Não há, no relato, nenhum sinal de indiferença do narrador em relação às práticas relatadas.

e) Incorreta. O narrador não apresenta sinais de saudosismo, mesmo porque as ações que descreve aparecem em seu relato como sendo contestáveis.