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Questão 7 1ª fase

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Questão 7

Sermões

Navegava Alexandre [Magno] em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: “Basta, Senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?”. Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades, e interpretar as significações, a uns e outros, definiu com o mesmo nome: [...] Se o rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.

Quando li isto em Sêneca, não me admirei tanto de que um filósofo estoico se atrevesse a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me admirou, e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos em tempo de príncipes católicos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina. Saibam estes eloquentes mudos que mais ofendem os reis com o que calam que com o que disserem; porque a confiança com que isto se diz é sinal que lhes não toca, e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala é argumento de que se ofenderão, porque lhes pode tocar. [...]

Suponho, finalmente, que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria ou escusa ou alivia o seu pecado [...]. O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao Inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera [...]. Não são só ladrões, diz o santo [São Basílio Magno], os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam.

(Essencial, 2011.)


Assinale a alternativa cuja citação se aproxima tematicamente do “Sermão do bom ladrão” de Antônio Vieira.



a)
“Dizem que tudo o que é roubado tem mais valor.” (Tirso de Molina, dramaturgo espanhol, 1584-1648)
b)
“O dinheiro que se possui é o instrumento da liberdade; aquele que se persegue é o instrumento da escravidão.” (Rousseau, filósofo francês, 1712-1778)
c)
“Que o ladrão e a ladra tenham a mão cortada; esta será a recompensa pelo que fizeram e a punição da parte de Deus; pois Deus é poderoso e sábio.” (Alcorão, livro sagrado islâmico, século VII)
d)
“Para quem vive segundo os verdadeiros princípios, a grande riqueza seria viver serenamente com pouco: o que é pouco nunca é escasso.” (Lucrécio, poeta latino, 98-55 a.C.)
e)
“Rouba um prego, e serás enforcado como um malfeitor; rouba um reino, e tornar-te-ás duque.” (Chuang-Tzu, filósofo chinês, 369-286 a.C.)
Resolução

a) Incorreta. Embora a problemática do roubo esteja presente tanto na citação de Tirso de Molina, quanto no “Sermão do bom ladrão”, o recorte temático de cada um desses textos é diferente. Enquanto na fala do dramaturgo espanhol a ideia defendida é da valorização do roubo, no texto de Antônio Vieira se constrói tanto a aproximação, quanto a distinção daqueles que roubam – os que o fazem por necessidade e aqueles que pertencem às mais altas esferas.

b) Incorreta. Rousseau reflete sobre as possíveis aplicações do dinheiro, como instrumento da liberdade ou da escravidão, não sendo essa a problemática no texto de Vieira.

c) Incorreta. O trecho do Alcorão indica a punição que será dada aos ladrões, definida pela justiça humana e divina, sem ponderar sobre possíveis diferenças entre aqueles que praticam a ação de roubar. O “Sermão do bom ladrão” parte justamente dessa distinção.

d) Incorreta. O texto de Lucrécio defende uma vida serena, na qual a verdadeira riqueza seria agir conforme os verdadeiros princípios. A valorização de uma vida simples, modesta, não corresponde ao tema do “Sermão do bom ladrão”.

e) Correta. A citação de Chuang-Tzu parte da mesma temática do sermão de Antônio Vieira. A ideia discutida em ambos os textos é a de que aquele que rouba pouco é culpado, enquanto quem rouba muito é grande.