Leia o capítulo CXVII do romance Quincas Borba, de Machado de Assis.
A história do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique desde já admitido que, se não fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona, — um triste molambo de mulher, — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.
— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.
— Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?
O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom padre Chagas! — Chamava-se Chagas. — Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa ideia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade, — a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo ideias consoladoras. Bom padre Chagas!
(Quincas Borba, 2012.)
No capítulo, o estilo adotado pelo narrador caracteriza-se como
| a) |
sentimental e utópico. |
| b) |
hiperbólico e dramático. |
| c) |
digressivo e irônico. |
| d) |
impessoal e objetivo. |
| e) |
subjetivo e moralizante. |
a) Incorreta. As interferências do narrador ao relatar os fatos não demonstram sentimentalismo, mas uma postura irônica, revelando uma visão crítica sobre os comportamentos humanos. Nesse sentido, seu estilo também não é utópico: ao contrário de buscar algo idealizado, o narrador desnuda a realidade egoísta na dinâmica das relações humanas.
b) Incorreta. Não se verificam exageros (hipérboles) ou dramaticidade no estilo do narrador. Os fatos relatados e os comentários tecidos assumem um tom crítico e irônico que se estende ao comportamento humano de modo geral.
c) Correta. O estilo digressivo e irônico, característico da obra machadiana, faz-se claramente presente no capítulo apresentado. A digressão ocorre quando o narrador associa o casamento de Maria Benedita ao conto ouvido na infância. Por meio desse artifício, há um desvio momentâneo da história narrada para ilustrar a afirmação (irônica) de que "as catástrofes são úteis, e até necessárias" - conclusão extraída inicialmente a partir da relação entre a epidemia de Alagoas e a união de Maria Benedita com Carlos Maria. Já a ironia pode ser verificada no relato do "contozinho": a atitude do "homem ébrio" surpreende o leitor, visto que ele, diante da situação catastrófica e do sofrimento da mulher, preocupa-se em pedir licença para acender um charuto nas labaredas que consumiam a casa. Assim, o "respeito pela propriedade" mascara uma postura egoísta, individualista. Além disso, a história, resumida na ideia de que sempre haverá alguém para "acender um charuto nas misérias alheias", demonstra como a desgraça de um pode ser o benefício de outro, o que não apenas representa o episódio do casamento de Maria Benedita, mas pode ser percebido na dinâmica do livro de modo geral.
d) Incorreta. Ao longo do capítulo, o narrador não apenas relata os fatos, mas os relaciona e analisa, deixando clara sua presença, que é perceptível também no uso da primeira pessoa ("ouvi", dou", "me"). Dessa forma, seria incorreto afirmar que ele adota um estilo impessoal e objetivo.
e) Incorreta. Embora o narrador desenvolva reflexões a respeito dos fatos relatados, seu objetivo não é apresentar uma perspectiva pessoal, subjetiva, sobre o que expõe, mas explicitar comportamentos universais, extrair conclusões que dizem respeito ao ser humano em geral. Além disso, não há um propósito moralizante, no sentido de corrigir costumes, mas apenas desmascará-los.