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Questão 2 Unesp 2023 - 1ª fase

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Questão 2

Mia Couto metáfora

Para responder às questões de 02 a 07, leia o trecho do conto “A menina, as aves e o sangue”, do escritor moçambicano Mia Couto (1955-     ).

     Aconteceu, certa vez, uma menina a quem o coração batia só de quando em enquantos. A mãe sabia que o sangue estava parado pelo roxo dos lábios, palidez nas unhas. Se o coração estancava por demasia de tempo a menina começava a esfriar e se cansava muito. A mãe, então, se afligia: roía o dedo e deixava a unha intacta. Até que o peito da filha voltava a dar sinal:

    — Mãe, venha ouvir: está a bater!

    A mãe acorria, debruçando a orelha sobre o peito estreito que soletrava pulsação. E pareciam, as duas, presenciando pingo de água em pleno deserto. Depois, o sangue dela voltava a calar, resina empurrando a arrastosa vida.

    Até que, certa noite, a mulher ganhou para o susto. Foi quando ela escutou os pássaros. Sentou na cama: não eram só piares, chilreinações. Eram rumores de asas, brancos drapejos de plumas. A mãe se ergueu, pé descalço pelo corredor. Foi ao quarto da menina e joelhou-se junto ao leito. Sentiu a transpiração, reconheceu o seu próprio cheiro. Quando lhe ia tocar na fronte a menina despertou:

    — Mãe, que bom, me acordou! Eu estava sonhar pássaros.

    A mãe sortiu-se de medo, aconchegou o lençol como se protegesse a filha de uma maldição. Ao tocar no lençol uma pena se desprendeu e subiu, levinha, volteando pelo ar. A menina suspirou e a pluma, algodão em asa, de novo se ergueu, rodopiando por alturas do tecto. A mãe tentou apanhar a errante plumagem. Em vão, a pena saiu voando pela janela. A senhora ficou espreitando a noite, na ilusão de escutar a voz de um pássaro. Depois, retirou-se, adentrando-se na solidão do seu quarto. Dos pássaros selou-se o segredo, só entre as duas.[...]

    Com o tempo, porém, cada vez menos o coração se fazia frequente. Quase deixou de dar sinais à vida. Até que essa imobilidade se prolongou por consecutivas demoras. A menina falecera? Não se vislumbravam sinais dessa derradeiragem. Pois ela seguia praticando vivências, brincando, sempre cansadinha, resfriorenta. Uma só diferença se contava. Já à noite a mãe não escutava os piares.

    — Agora não sonha, filha?

    — Ai mãe, está tão escuro no meu sonho!

    Só então a mãe arrepiou decisão e foi à cidade:

    — Doutor, lhe respeito a permissão: queria saber a saúde de minha única. É seu peito... nunca mais deu sinal.

    O médico corrigiu os óculos como se entendesse rectificar a própria visão. Clareou a voz, para melhor se autorizar. E disse:

    — Senhora, vou dizer: a sua menina já morreu.

    — Morta, a minha menina? Mas, assim...?

    — Esta é a sua maneira de estar morta.

    A senhora escutou, mãos juntas, na educação do colo. Anuindo com o queixo, ia esbugolhando o médico. Todo seu corpo dizia sim, mas ela, dentro do seu centro, duvidava. Pode-se morrer assim com tanta leveza, que nem se nota a retirada da vida? E o médico, lhe amparando, já na porta:

    — Não se entristonhe, a morte é o fim sem finalidade.

    A mãe regressou à casa e encontrou a filha entoando danças, cantarolando canções que nem existem. Se chegou a ela, tocou-lhe como se a miúda inexistisse. A sua pele não desprendia calor.

    — Então, minha querida não escutou nada?

    Ela negou. A mãe percorreu o quarto, vasculhou recantos. Buscava uma pena, o sinal de um pássaro. Mas nada não encontrou. E assim, ficou sendo, então e adiante.

    Cada vez mais fria, a moça brinca, se aquece na torreira do sol. Quando acorda, manhã alta, encontra flores que a mãe depositou ao pé da cama. Ao fim da tarde, as duas, mãe e filha, passeiam pela praça e os velhos descobrem a cabeça em sinal de respeito.

    E o caso se vai seguindo, estória sem história. Uma única, silenciosa, sombra se instalou: de noite, a mãe deixou de dormir. Horas a fio a sua cabeça anda em serviço de escutar, a ver se regressam as vozearias das aves.

(Mia Couto. A menina sem palavra, 2013.)


“E pareciam, as duas, presenciando pingo de água em pleno deserto.” (3º parágrafo)

No contexto do conto, “pingo de água” e “pleno deserto” referem-se, metaforicamente,



a)

à pulsação da filha e ao peito da filha, respectivamente.

b)

à filha e à mãe, respectivamente.

c)

ao peito da filha e à pulsação da filha, respectivamente.

d)

à orelha da mãe e ao peito da filha, respectivamente.

e)

à mãe e à filha, respectivamente.

Resolução

O conflito desenvolvido no conto gira em torno de uma menina com problemas cardíacos. Logo no primeiro parágrafo, Mia Couto descreve a doença por meio de expressões como "o sangue estava parado" e "o coração estancava por demasia". Tais expressões já remetem à ideia de um coração (ou "peito") seco como o deserto, à espera de sangue (mesmo que como um "pingo de água") para voltar a pulsar.

Em seguida, a filha anuncia, no segundo parágrafo, que seu coração estava batendo. Assim, a imagem de presenciar um "pingo de água em pleno deserto" representa a volta do sangue a pulsar no peito da filha, algo muito esperado e que garantiria, naquele instante, que a garota não morreria.