Para responder às questões de 02 a 07, leia o trecho do conto “A menina, as aves e o sangue”, do escritor moçambicano Mia Couto (1955- ).
Aconteceu, certa vez, uma menina a quem o coração batia só de quando em enquantos. A mãe sabia que o sangue estava parado pelo roxo dos lábios, palidez nas unhas. Se o coração estancava por demasia de tempo a menina começava a esfriar e se cansava muito. A mãe, então, se afligia: roía o dedo e deixava a unha intacta. Até que o peito da filha voltava a dar sinal:
— Mãe, venha ouvir: está a bater!
A mãe acorria, debruçando a orelha sobre o peito estreito que soletrava pulsação. E pareciam, as duas, presenciando pingo de água em pleno deserto. Depois, o sangue dela voltava a calar, resina empurrando a arrastosa vida.
Até que, certa noite, a mulher ganhou para o susto. Foi quando ela escutou os pássaros. Sentou na cama: não eram só piares, chilreinações. Eram rumores de asas, brancos drapejos de plumas. A mãe se ergueu, pé descalço pelo corredor. Foi ao quarto da menina e joelhou-se junto ao leito. Sentiu a transpiração, reconheceu o seu próprio cheiro. Quando lhe ia tocar na fronte a menina despertou:
— Mãe, que bom, me acordou! Eu estava sonhar pássaros.
A mãe sortiu-se de medo, aconchegou o lençol como se protegesse a filha de uma maldição. Ao tocar no lençol uma pena se desprendeu e subiu, levinha, volteando pelo ar. A menina suspirou e a pluma, algodão em asa, de novo se ergueu, rodopiando por alturas do tecto. A mãe tentou apanhar a errante plumagem. Em vão, a pena saiu voando pela janela. A senhora ficou espreitando a noite, na ilusão de escutar a voz de um pássaro. Depois, retirou-se, adentrando-se na solidão do seu quarto. Dos pássaros selou-se o segredo, só entre as duas.[...]
Com o tempo, porém, cada vez menos o coração se fazia frequente. Quase deixou de dar sinais à vida. Até que essa imobilidade se prolongou por consecutivas demoras. A menina falecera? Não se vislumbravam sinais dessa derradeiragem. Pois ela seguia praticando vivências, brincando, sempre cansadinha, resfriorenta. Uma só diferença se contava. Já à noite a mãe não escutava os piares.
— Agora não sonha, filha?
— Ai mãe, está tão escuro no meu sonho!
Só então a mãe arrepiou decisão e foi à cidade:
— Doutor, lhe respeito a permissão: queria saber a saúde de minha única. É seu peito... nunca mais deu sinal.
O médico corrigiu os óculos como se entendesse rectificar a própria visão. Clareou a voz, para melhor se autorizar. E disse:
— Senhora, vou dizer: a sua menina já morreu.
— Morta, a minha menina? Mas, assim...?
— Esta é a sua maneira de estar morta.
A senhora escutou, mãos juntas, na educação do colo. Anuindo com o queixo, ia esbugolhando o médico. Todo seu corpo dizia sim, mas ela, dentro do seu centro, duvidava. Pode-se morrer assim com tanta leveza, que nem se nota a retirada da vida? E o médico, lhe amparando, já na porta:
— Não se entristonhe, a morte é o fim sem finalidade.
A mãe regressou à casa e encontrou a filha entoando danças, cantarolando canções que nem existem. Se chegou a ela, tocou-lhe como se a miúda inexistisse. A sua pele não desprendia calor.
— Então, minha querida não escutou nada?
Ela negou. A mãe percorreu o quarto, vasculhou recantos. Buscava uma pena, o sinal de um pássaro. Mas nada não encontrou. E assim, ficou sendo, então e adiante.
Cada vez mais fria, a moça brinca, se aquece na torreira do sol. Quando acorda, manhã alta, encontra flores que a mãe depositou ao pé da cama. Ao fim da tarde, as duas, mãe e filha, passeiam pela praça e os velhos descobrem a cabeça em sinal de respeito.
E o caso se vai seguindo, estória sem história. Uma única, silenciosa, sombra se instalou: de noite, a mãe deixou de dormir. Horas a fio a sua cabeça anda em serviço de escutar, a ver se regressam as vozearias das aves.
(Mia Couto. A menina sem palavra, 2013.)
A linguagem poética, o emprego de neologismos e as marcas de oralidade, que podem ser identificados no texto de Mia Couto, caracterizam também a prosa do seguinte escritor brasileiro:
a) |
Guimarães Rosa. |
b) |
Graciliano Ramos. |
c) |
Machado de Assis. |
d) |
Euclides da Cunha. |
e) |
Aluísio de Azevedo. |
a) Correta. Um dos traços mais marcantes da obra de Guimarães Rosa é o trabalho com a chamada "prosa poética". O autor, embora organize seu texto em frases e parágrafos, recorre a expedientes típicos do gênero lírico, como o uso de metáforas, a elaboração de imagens inusitadas e a exploração da musicalidade. Aliado a isso, desenvolve um trabalho peculiar explorando uma linguagem que mistura termos regionais, traços de oralidade e a criação de neologismos. Tais características também são visíveis na obra de Mia Couto. O próprio autor moçambicano já declarou diversas vezes ter sido fortemente influenciado pela literatura roseana.
b) Incorreta. Graciliano Ramos, como um autor conhecido por suas obras regionalistas, dentro do contexto da segunda geração do modernismo brasileiro, recorre com frequência a marcas de oralidade na caracterização de seus personagens. No entanto, não se verificam neologismos nem o uso de linguagem poética em suas obras. Seu estilo é marcado por uma linguagem enxuta e objetiva, "seca" como a terra do sertão nordestino.
c) Incorreta. A linguagem, nas obras de Machado de Assis, segue a norma padrão da escrita. O autor apresenta uma preocupação com a correção gramatical e um registro culto, muitas vezes recorrendo a citações eruditas, ao mesmo tempo em que trabalha a concisão vocabular. Sendo assim, não apresenta traços em comum com a linguagem de Mia Couto.
d) Incorreta. Euclides da Cunha, em sua grande obra "Os Sertões", embora aborde a Guerra de Canudos e faça uma análise minuciosa do povo sertanejo baiano, utiliza-se de uma linguagem extremamente formal e rebuscada. Além disso, com frequência, faz uso de um vocabulário técnico, científico, distanciando-se, assim, do estilo de Mia Couto.
e) Incorreta. Aluísio de Azevedo é o maior representante do naturalismo no Brasil. Em suas obras, desenvolve descrições minuciosas de personagens e ambientes por meio de apelos visuais, olfativos, auditivos e táteis. Dessa forma, seguindo os preceitos cientificistas da época, visa retratar a sociedade em seus aspectos mais degradantes, explicitando o aspecto biológico dos seres humanos. Não há, como em Mia Couto, uma linguagem poética, mas o uso da linguagem em favor de uma visão determinista.