No pensamento grego, tudo o que é “musical” se relaciona intimamente com o ritual, sobretudo com as festas, nas quais, evidentemente, o ritual possui sua função específica. Talvez não haja uma descrição mais lúcida das relações entre o ritual, a dança, a música e o jogo do que a das Leis de Platão. Os deuses, diz ele, cheios de piedade pela raça humana, condenada ao sofrimento, ordenaram que se realizassem as festas de ação de graças como descanso para suas preocupações, e deram-lhes Apolo, as Musas e Dionísio como companheiros dessas festas, a fim de que essa divina comunidade festiva restabelecesse a ordem das coisas entre os homens.
(Johan Huizinga. Homo ludens, 2007.)
O excerto, que aborda história e pensamento na Grécia Antiga, caracteriza
a) |
a dimensão material dos sentimentos e das ações políticas dos homens, sustentada pela filosofia clássica. |
b) |
a centralidade do mito na sociedade antiga grega e o vínculo desse mito com manifestações de caráter público. |
c) |
a fragilidade do politeísmo perante a lógica e a incapacidade desse politeísmo de mobilizar politicamente a sociedade. |
d) |
as origens filosóficas da piedade e do sentimento de culpa posteriormente apropriados pelo cristianismo. |
e) |
as matrizes religiosas da democracia grega e o reconhecimento por essa democracia da igualdade entre os homens livres. |
Quando vamos abordar a relação entre mitologia e o nascimento da filosofia, no contexto dos estudos históricos e filosóficos, tomamos referenciais teóricos como Werner Jaeger e Jean Pierre Vernant. Segundos os autores, e cada vez mais a comunidade acadêmica vê assim, as relações entre mito e pensamento filosófico são mais complexas do que já se imaginou. Por muito tempo, a história da filosofia viu a reflexão filosófica como contrária ao mito, posicionamento que chamamos, hoje, de tese da descontinuidade. Porém, graças aos autores supracitados, entendemos que a filosofia continuou (tese da continuidade) algumas das tendências míticas. Platão, mencionado no texto do exercício, é um dos filósofos que utilizamos para sustentar esse posicionamento, já que, mesmo sendo um dos autores clássicos da Grécia Antiga, "usa e abusa" dos relatos míticos e, como diz o gabarito da questão, coloca as narrativas mitológicas no centro dos debates públicos, na medida em que as utiliza de muitas maneiras, em especial com finalidades pedagógicas. Por isso:
a) Incorreta. A filosofia clássica não sustenta a dimensão material das questões políticas gregas - em especial Platão, mencionado no texto, sabido pensador metafísico.
b) Correta. Sim, a centralidade da mitologia na vida pública grega é inconteste, seja pelos motivos acima mencionados, seja por outros. Mais exemplos disso: O texto que norteia a questão menciona os deuses Apolo e Dionísio. O primeiro teve um templo construído na cidade de Delfos, templo conhecido por ser ponto de peregrinação da antiga religião grega e, ademais, por acolher Sócrates e revelar, a ele, a famosa mensagem: "tu és o mais sábio de Atenas". O segundo teve uma arte inventada em sua homenagem: o teatro - por ser deus do corpo e da representação. Seja em um caso ou em outro, portanto, as influências na organização da vida social grega é evidente.
c) Incorreta. O politeísmo, no contexto mencionado, não é frágil e incapaz de mobilizações sociais. Na verdade, a simples leitura do texto mostra o contrário: Apolo e Dionísio são celebrados, juntos com outras deidades, para o restabelecimento da ordem.
d) Incorreta. Não podemos vincular piedade e sentimento de culpa ao texto que menciona Platão ou qualquer outro grego antigo. Isso porque a história da filosofia atribui tais conceitos ao cristianismo. É obviamente por esse motivo que a frase "posteriormente apropriados pelo cristianismo" não é correta (o cristianismo não se apropria dessas ideias, mas as "inventa").
e) Incorreta. Sabendo das ressalvas da democracia grega, não podemos consentir com a frase "igualdade entre os homens livres". O próprio Platão, filósofo citado no texto, diz que a cidade é (e deve ser) dividida em três classes diferentes, segundo a "alma" (ouro, prata e bronze) de cada pessoa.