O diabo parece ter sido estranho tanto para os tupis do Brasil quanto aos nauas, maias, incas e demais povos americanos. O cosmos maia era neutro, as forças e os seres sagrados “não eram nem bons, nem ruins, mas apenas caprichosos”. [...] A cosmologia das populações andinas não contava com a noção de mal personificada num ser satânico [...].
(Laura de Mello e Souza. Inferno atlântico. Demonologia e colonização: Séculos XVI-XVIII, 1993.)
O excerto permite afirmar que
a) |
os sacrifícios humanos realizados por alguns povos nativos da América eram destituídos de significado religioso. |
b) |
a influência do catolicismo europeu na colonização da América facilitou a preservação de elementos religiosos nativos. |
c) |
a carência da noção de mal nas culturas originárias da América indica a ingenuidade e a pureza dos povos nativos. |
d) |
os povos nativos americanos tinham uma visão religiosa binária e incompleta das forças que os afetavam. |
e) |
a presença de representações do diabo no imaginário americano derivou do processo colonizador.
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a) Incorreta. Os sacrifícios humanos realizados por determinados povos ameríndios apresentavam sentidos fundamentalmente religiosos, ao contrário do afirmado. Por exemplo, para os Astecas, tais rituais serviam como oferenda aos deuses de seu panteão, buscando demonstrar sua devoção ou mesmo aplacar suas ações punitivas no mundo. Os sacrifícios também representavam uma forma de dignificar a própria existência do sacrificado, que receberia a oportunidade de ser conduzido à imortalidade, outro viés diretamente vinculada à religiosidade desse povo.
b) Incorreta. Não é correto afirmar que a influência do catolicismo contribuiu para a preservação de elementos religiosos nativos. Pelo contrário, as incisivas ações de catequização por parte da Igreja católica - a partir, por exemplo, das missões jesuíticas - fizeram parte de um violento processo de imposição cultural e desrespeito das crenças dos povos originários.
c) Incorreta. A afirmação de que ausência de determinadas noções indicam a "ingenuidade e pureza" dos povos nativos é etnocêntrica e desconsidera a diversidade cultural dos grupos indígenas presentes no território. Para refutar tal generalização, podemos citar como exemplo a crença yanomami que acredita na existência dos espiritos xapiripë, ancestrais animais ou espíritos xamânicos que interagem com os xamãs de seu povo. Os xapiripë não são sempre belos e bondosos, podem ser criaturas terríveis e monstruosas, ou seja, seres maléficos.
d) Incorreta. Afirmar que os povos nativos americanos tinham uma visão religiosa binária e incompleta é uma colocação simplificadora e generalizante. Vale destacar que a ampla diversidade cultural dos povos originários americanos faziam com que os grupos possuíssem cosmologias e visões religiosas bastante diversificadas (e, em sua maioria, não binárias). Assim como mencionado na alternativa B, a crença yanomami nos xapiripë - espíritos amazônicos - demonstram a ausência de uma visão binária e uma crença bastante complexa da influência dessas forças na vida na floresta.
e) Correta. Conforme o texto sugere, os povos ameríndios apresentam uma cosmologia discrepante do antagonismo cristão existente entre “Deus” e o “diabo”. Para os povos autóctones da América, não haveria uma força divina que personificasse a maldade, tal qual o diabo representa dentro da lógica cristã. Tal diferença de natureza filosófica entre a fé dos nativos e a católica forçou os missionários a promoverem uma série de adaptações e ressignificações para garantir a transmissão de suas ideias e conceitos centrais. Por exemplo, no processo de catequização dos Tupi no Brasil, para apresentar a ideia monoteísta de um Deus maior e onisciente, os missionários jesuítas buscaram associá-lo ao Tupã, divindade pré-existente na cosmologia Tupi. Contudo, para os nativos, Tupã seria uma espécie de demônio, controlador de raios e trovões e capaz de causar muitos estragos na própria humanidade, o que divergia da noção original do cristianismo. Tal exemplo ilustra uma dificuldade experimentada no processo de imposição de representações religiosas inexistentes na cosmologia indígena.