Como jurisconsulto, não pretendo tratar da natureza da servidão, nem da qualidade do domínio que o homem adquire sobre seu semelhante. Pretendo defender os nossos colonos da reprovação, que muitas pessoas, mais piedosas que sábias, lhes fazem, afirmando que eles tratam cristãos como escravos, comprando-os, vendendo-os e deles dispondo em territórios regidos pelas leis da França, um país que abomina a servidão acima de todas as nações do mundo. Todos os escravos que desembarcam na França recuperam felizmente a liberdade perdida.
(Jean-Baptiste Du Tertre. Apud: Rafael de Bivar Marquese. Feitores do corpo, missionários da mente: Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860, 2004. Adaptado.)
O excerto, publicado na década de 1660 por um padre dominicano após ter vivido quase duas décadas em colônias francesas na América,
a) |
propõe conjugar a fé com a razão e aplica os princípios da escolástica à análise da condição dos escravos. |
b) |
confirma a predominância dos valores morais cristãos como baliza para a definição da política colonial. |
c) |
reproduz princípios do pensamento de Voltaire e sustenta o valor universal da liberdade de natureza. |
d) |
estabelece uma diferenciação entre o respeito à liberdade no território francês e nas possessões coloniais. |
e) |
endossa a crítica de Rousseau às desigualdades de origem e defende a abolição da escravidão em todo o império francês. |
a) Incorreta. O autor não busca analisar a condição dos escravos, já que, em suas próprias palavras, não pretende “tratar da natureza da servidão” e nem da qualidade do “domínio que outro homem adquire sobre seu semelhante”. O trecho indicado pelo exercício também não apresenta argumentos vinculados à escolástica, isto é, vertente da filosofia medieval que buscava conciliar a racionalidade com a fé cristã.
b) Incorreta. O escrito do padre Du Tertre defende os colonos das críticas feitas pela vigência da escravidão nos territórios franceses na América. Ou seja, busca justificar as práticas e atitudes dos colonos franceses, inclusive a escravidão, a despeito das críticas de natureza religiosa e das contradições com as leis francesas. Portanto, é incorreto sugerir que sua argumentação busca confirmar a “predominância dos valores cristãos” para a definição da política colonial, pois defende justamente a manutenção de uma prática acusada de contradição com os valores morais de tal religião.
c) Incorreta. Voltaire (1694-1778) foi um pensador vinculado ao Iluminismo, movimento que teve grande destaque na Europa durante o século XVIII. Como o documento é datado da década de 1660, é anacrônico associá-lo com os pensamentos do referido filósofo iluminista.
d) Correta. Na visão do padre Du Tertre, a manutenção da escravidão nos territórios coloniais franceses não contradiz as leis da França, país que “abomina a servidão acima de todas as nações do mundo”. Tal situação ocorreria, pois, todos os escravos que eventualmente desembarcassem em território francês na Europa recuperariam prontamente sua “liberdade perdida”. Portanto, segundo seu raciocínio, há uma distinção estabelecida entre a condição dos cativos em territórios coloniais e metropolitanos da França, o que não seria incongruente com as leis vigentes do país. A diferenciação estabelecida pelo padre não era excepcional para a história da escravidão moderna, tendo em vista que outros episódios também efetuaram uma distinção análoga. Por exemplo, Portugal aboliu a entrada de escravos em sua metrópole a partir de 1761, enquanto que manteve a permissão do tráfico nos territórios coloniais.
e) Incorreta. É anacrônico associar o documento em questão com o pensamento de Rousseau, tendo em vista que o filósofo francês viveu apenas no século XVIII. Também não é possível afirmar que o documento defende a “abolição da escravidão em todo império francês”, já que o argumento do autor indica uma defesa da manutenção da escravidão em territórios coloniais.