Ainda que a fome ocorrida na Itália em 536 tenha origem nos eventos climáticos, suas implicações são tanto políticas quanto econômicas. Nos primeiros séculos da Idade Média, o auxílio aos famintos se inscreve no domínio da gestão pública, mesmo quando a ação de seus agentes é apresentada sob o ângulo da piedade e da caridade individuais, como é o caso da Gália merovíngia. Assim, o fato de que as respostas à fome são mostradas, na Gália, como o fruto de iniciativas pessoais fundadas no imperativo da caridade deriva da natureza das fontes do século VI.
SILVA, M. C. Os agentes públicos e a fome nos primeiros séculos da Idade Média.
Varia Historia. n. 60, set.- dez. 2016 (adaptado).
Na conjuntura histórica destacada no texto, o dever de agir em face da situação de crise apresentada pertencia à jurisdição
a) |
da nobreza, proveniente da obrigação de proteção ao campesinato livre. |
b) |
da realeza, decorrente do conceito de governo subjacente à monarquia cristã. |
c) |
dos mosteiros, resultante do caráter fraternal afirmado as regas monásticas. |
d) |
dos bispados, consequente da participação dos clérigos nos assuntos comunitários. |
e) |
das corporações, procedente do padrão assistencialista previsto nas normas estatutárias. |
a) Incorreta. Embora a relação feudal entre nobres e camponeses sugerisse uma obrigação de proteção dos senhores com seus servos, a alternativa é imprecisa ao sugerir que tal proteção se estendia ao "campesinato livre". Afinal, um dos pressupostos básicos do regime de servidão feudal é justamente a vinculação do camponês à terra e sua submissão ao senhor, condições incompatíveis com uma suposta "liberdade" experimentada pelo campesinato.
b) Correta. Ainda que a historiografia tradicional saliente a virtual inexistência de um poder central na Alta Idade Média, o texto base vai na contramão desse argumento ao destacar a atuação de "agentes públicos" no combate à fome. Ao analisar cartas referentes à crise alimentar na Itália e na Gália Merovíngia, o historiador Marcelo Cândido da Silva (autor do texto base) identifica um esforço das autoridades públicas em tentar mitigar o impacto da fome nas províncias atingidas em seu reino. Para tal, tomavam medidas como a redução de impostos em alimentos, o estabelecimento de uma logística para o transporte de víveres entre províncias vizinhas ou mesmo o confisco de tributos destinados à Igreja para responder à calamidade. Neste último caso, o rei Clotário teria ordenado na Gália “a todas as igrejas do reino que vertessem um terço de suas rendas ao fisco" (p. 792 do artigo), o que gerou mesmo um descontentamento por parte do clero afetado pela medida. Portanto, segundo o argumento do autor, nota-se uma expectativa pública de ação da realeza para responder à crise vivida, sendo, portanto, uma incumbência vinculada à sua jurisdição.
Nota: O trecho apresentado pelo exercício fornece instrumentos insuficientes para que o(a) estudante chegue seguramente na presente conclusão. Afinal, não há informações adequadas sobre o que exatamente seria a "gestão pública" citada pelo texto, tampouco quem seriam seus “agentes”. Tais aspectos são importantes para a solução do exercício e somente são esclarecidos na devida consulta ao artigo do historiador.
c) Incorreta. O dever de ação em situações de crise não recaíam aos mosteiros, isto é, centros de ordens religiosas que abrigavam aqueles que se dedicavam à vida monástica. Além do dever de resposta a tais situações não recair nesses religiosos eremitas, a alternativa comete uma generalização ao sugerir que todos os mosteiros apresentam um "caráter fraternal afirmado" em suas regras, tendo em vista que havia uma grande diversidade de rotinas, objetivos e mesmo de relação com o mundo exterior entre os diferentes mosteiros.
d) Incorreta. No artigo mencionado pelo exercício, para demonstrar a existência efetiva de auxílio dos reis aos pobres na época merovíngia, o autor cita o caso do rei Clotário, na Gália merovíngia. Aqui, o rei teria ordenado a todas as igrejas do reino que vertessem um terço de suas rendas ao fisco. Enquanto todos os bispos, contra sua vontade, consentiram e assinaram esse decreto […]" (p. 792). A necessidade de ação do rei por meio de decreto revela que a expectativa de ação nas situações de crises de fome recaía principalmente sobre a jurisdição do poder real, e não exatamente do bispado. Além disso, no mesmo artigo, Cândido analisa o relato de Gregório de Tours, no qual ele menciona as ações de um bispo que, embora tenha realizado obras para combater a calamidade da fome analisada, enfatiza que sua “decisão de ajudar os pobres seria uma iniciativa individual do bispo, com o testemunho de Deus" (p. 788).
e) Incorreta. As corporações eram associações que reuniam trabalhadores de um determinado ofício durante a Idade Média, tendo um importante papel na organização das relações de trabalho e na regulamentação da produção no interior das cidades medievais. Embora a organização jurídica das corporações previsse a existência de uma estrutura de amparo social aos membros da instituição, essa era destinada exclusivamente a seus associados, não sendo da jurisdição das corporações a atuação pública em situações de crises generalizadas. Além disso, vale ressaltar que as corporações de ofício tiveram seu maior destaque e desenvolvimento entre os séculos XI e XV, ou seja, período posterior à crise mencionada na questão.