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Questão 0 Unifesp 2023 - 1º dia

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Redação

Texto Dissertativo

Texto 1

Meritocracia pode ser compreendida como um sistema de hierarquização e premiação baseado nos méritos pessoais de cada indivíduo. O poder do mérito está assentado na suposição de qualidades individuais, resultado de esforço e dedicação.

(Berenice Bento. “Crítica da crítica à meritocracia”. https://diplomatique.org.br, 27.04.2021. Adaptado.)

Texto 2

Um mês depois da Tomada da Bastilha, em 1789, a Assembleia Nacional da França aprovou um dos textos mais importantes da história do mundo — a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Um trecho consagrava uma ideia nova para a época, uma das bandeiras dos iluministas franceses: as pessoas devem ser julgadas por seu mérito, e não pela raça, sexo ou pela “nobreza do sangue”.

De acordo com o sexto artigo da Declaração, “Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”.

(Leandro Narloch. “Ideia revolucionária fundou o mundo moderno”. www.folha.uol.com.br, 15.09.2021. Adaptado.)

Texto 3

No livro Capital e ideologia, Thomas Piketty argumenta que a ideia de meritocracia serve para que os “vencedores” do atual sistema econômico justifiquem a desigualdade ― em qualquer escala ― jogando nos “perdedores” a culpa por seu próprio fracasso, como se obter êxito fosse apenas questão de esforço individual.

(“Como o discurso da meritocracia ajuda a ampliar a desigualdade social”. www.intrinseca.com.br, 01.09.2020.)

Texto 4

Atualmente, enxergamos o sucesso não como uma questão de sorte, mas como algo que conquistamos por meio de nosso próprio esforço e luta. Esse é o cerne da ética meritocrática. Ela exalta a liberdade e o merecimento. Esse modo de refletir gera poder. Incentiva as pessoas a pensar em si mesmas como responsáveis por seu destino, não como vítimas de forças além do seu controle. Mas tem também um lado negativo. Quanto mais nos enxergamos como pessoas que vencem pelo próprio esforço, menos provável será que nos preocupemos com o destino de quem é menos afortunado do que nós. Se meu sucesso é resultado de minhas ações, o fracasso deles deve ser culpa deles. Essa lógica faz a meritocracia ser corrosiva para a coletividade e a noção de bem comum.

(Michael J. Sandel. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?, 2021. Adaptado.)

Texto 5

O bem comum deve ser considerado como uma pluralidade de valores que resultam da relação entre o interesse particular de cada indivíduo com o interesse da sociedade. Em um espaço político, pensar apenas em interesses privados, em detrimento do bem comum, significaria corromper a coisa pública.

(Paula Mendes Lima. “Interesse e bem comum”. In: Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling. Dicionário da república, 2019. Adaptado.)

Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva um texto dissertativo-argumentativo, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema:

É possível conciliar mérito e bem comum?



Comentários

O vestibular Unifesp 2023 coloca em pauta uma discussão atemporal, confrontando as noções de mérito e bem comum. A noção de meritocracia esteve em voga recentemente em diversos debates sociais, mas, conforme explicado pela própria proposta, a lógica meritocrática remonta à Revolução Francesa. Tendo isso em mente, o candidato poderia mobilizar uma série de informações e ideias – tanto do presente, quanto do passado – para responder à pergunta-tema: “É possível conciliar mérito e bem comum?”. Por exemplo, o que defensores e detratores de políticas propulsoras de ações afirmativas (como as cotas) problematizam em relação à meritocracia? Ou o que significou para os rumos da humanidade que pessoas pudessem tomar decisões ou ascender socialmente a partir de seu próprio esforço, independentemente de sua origem?. Há, ainda, outras possibilidades que o candidato poderia explorar.

A resposta ao questionamento posto pela prova deveria cumprir a função de tese da dissertação do candidato, consequentemente, precisaria ser demonstrada e sustentada por um raciocínio argumentativo coerente. Para auxiliar os vestibulandos em sua tarefa dissertativa, a proposta oferece uma coletânea de textos bastante eficiente.

O excerto 1 traz um elemento fundamental tanto para a compreensão do tema, quanto para o fomento de um projeto de texto: a definição de meritocracia. De acordo com Berenice Bento, em resumo, o conceito diz respeito à hierarquização e premiação dos indivíduos a partir de suas qualidades, que seriam resultado de seus esforços individuais.

Feita a conceitualização, o texto 2 passa a explicar a origem da ideia de meritocracia. Segundo Leandro Narloch, com o início da Revolução Francesa e da propagação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, veio à tona a possibilidade de que as pessoas não precisassem mais estar atreladas a uma linhagem nobre para que tivessem direitos e para que pudessem, a partir de suas escolhas e ações, tomar os rumos da própria existência. Com isso, nota-se, ao contrário do que se vê hoje (quando a defesa do mérito está mais associada a pensamentos conservadores), que o cerne da meritocracia é revolucionário e progressista, afinal dava a qualquer cidadão, ao menos em tese, oportunidades outrora reservadas apenas a uma parcela da sociedade, cujo único feito era somente o de ter nascido com privilégios natos. O artigo de Narloch poderia ser aproveitado pelo candidato para estabelecer comparações sobre o que se entende por meritocracia hoje e a origem da ideia, além de engatilhar a discussão de que, mesmo pretensamente revolucionário, tal sistema ainda aprisiona os indivíduos cujas condições materiais não os colocam em pé de igualdade com os demais.

Tal problematização poderia ser aprofundada a partir do fragmento 3, responsável por trazer para a discussão o lado obtuso da meritocracia, apresentando o raciocínio de Thomas Piketty. Para o economista, na atualidade, o sistema meritocrático funciona de modo perverso, pois culpabiliza integralmente os indivíduos por seus próprios fracassos, menosprezando o contexto em que estão inseridos. A perversidade reside ainda no fato de que, no Capitalismo, o “fracassado” costuma ser aquele que já está às margens da sociedade, a quem os direitos mínimos são negados e que, portanto - a despeito de seu esforço individual – dificilmente alcançará os patamares já ocupados por outros que raramente precisam de tanto empenho para se manter ou conquistar lugares de prestígio social. Percebe-se, então, que ironicamente a meritocracia assumiu hoje o lugar do título de nobreza do período anterior à Tomada da Bastilha.

Por sua vez, Michael J. Sandel, no texto 4, segue a linha de questionar a meritocracia, caracterizando-a quase como um sistema de alienação, que faz com o que o indivíduo olhe apenas para si e secundarize a situação em que vive. Em outras palavras, todo ganho seria resultado unicamente do afinco de cada um. Ora, o desdobramento de um raciocínio como esse é bastante danoso para a vida em sociedade, porque olha para as dificuldades do outro de forma rasa, encarando-as como condição tão somente da falta de dedicação, e nos torna individualistas, uma vez que tira a nossa responsabilidade para com o coletivo, dado que o esforço pessoal é a resposta para todas as mazelas sociais. As informações desse extrato de “A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?” caberiam muito bem em uma análise das consequências do pensamento meritocrático para o tempo presente.

A coletânea é findada pela explicação do que é bem comum, também necessário ao entendimento pleno do tema e capaz de dar sequência à explanação dos frutos da meritocracia. Paula Mendes Lima aponta que o bem comum equaciona os interesses particulares e coletivos, fazendo prevalecer os segundos para o bom funcionamento da vida em sociedade. Com isso em mente, vale discutir, em paralelo às ideias de Sandel, se um sistema altamente individualista seria capaz de promover o bem comum.

Vale acrescentar, a título de conclusão, que não há resposta única ao questionamento da prova, mas resposta adequada. A adequação está essencialmente ligada à qualidade argumentativa da redação.