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Questão 13 Unifesp 2023 - 1º dia

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Questão 13

textos literários Carlos Drummond de Andrade

Para responder às questões de 12 a 15, leia a crônica “Descanso de garçom”, de Carlos Drummond de Andrade, publicada originalmente em 20.11.1965.

A confeitaria esteve fechada bem uns seis meses, para obras. Passando pela calçada, os antigos frequentadores já não tinham esperança de voltar ao lanche costumeiro, pois qualquer casa que se fecha para remodelação, já sabe: vira banco ou companhia de investimentos muito sofisticada, com letras na porta de vidro dizendo assim: Kredytar, Finanlys, Ríkox...

Pois aquela, desmentindo a lei econômica, reabrira confeitaria mesmo, e tão moderna que muitos clientes se sentiram enleados ao entrar em local antes de conhecida modéstia; o estabelecimento exigiria talvez fregueses também remodelados, de gabarito mais alto. Pouco a pouco foram regressando, se abancando. Era tudo novo, menos o garçom, a louça e o talher. “Por sinal que talher e louça também estão pedindo reforma, hein, Belisário?”.

Pois aquela, desmentindo a lei econômica, reabrira confeitaria mesmo, e tão moderna que muitos clientes se sentiram enleados ao entrar em local antes de conhecida modéstia; o estabelecimento exigiria talvez fregueses também remodelados, de gabarito mais alto. Pouco a pouco foram regressando, se abancando. Era tudo novo, menos o garçom, a louça e o talher. “Por sinal que talher e louça também estão pedindo reforma, hein, Belisário?”.

— E ficou mesmo — respondeu-lhe o gerente. — Belisário, vê se te manca, tá?

Belisário remeteu-se ao silêncio. Aos patrões não adianta ajudar; pois que se danem. E foi cuidar da vida, que não anda mole.

— Estou vendo pela sua cara, Belisário. Você encolheu, rapaz!

Aí, ele me confiou que passara seis meses comendo só uma vez por dia, e não era comida de banquete. Para variar, durante um mês, somente almoçava; no mês seguinte, jantava apenas. Dessa maneira, reeducou o estômago e pôde sobreviver. Mas o Otacílio, esse, “já reparou no Otacílio?”.

Otacílio, um baixote, gordo, servia no setor da esquerda. Passeei os olhos pelo salão, não o encontrei.

— Pois é aquele ali, no lugar de sempre. O senhor não reconheceu? Natural. Perdeu vinte quilos com as obras. Quase abotoa o paletó

Luva-de-Pelica, um todo cheio de salamaleques, perdera quinze e teve de voltar para Miracema. João Velho, dez; João Novo, onze; outros ficaram entre dez e doze quilos. Toda a turma emagrecera. O salário fora pago pontualmente pela firma, porém sumiram as gorjetas, e é gorjeta que sustenta um homem.

— Mas, Belisário, vocês podiam se defender com biscates, servir em reuniões, casamentos.

— Não, doutor. Biscate é sagrado: fica para os colegas aposentados pelo Instituto. Admirei a generosidade de Belisário e de seus pares da ativa, e ia louvá-la, mas ele não deixou:

— E daí, se a gente pega a xepa deles, eles vêm de sarrafo em cima da gente, morou? Tem muito aposentado bom de briga, e lá um dia a gente vai ser um velhinho igual a eles, tem de pensar no amanhã e no depois de amanhã... Não vale a pena chupar jabuticaba dos outros.

— E que é que você fez durante esse meio ano?

— Eu? Nada. Tempo havia de sobra, dava vontade de aproveitar, mas aproveitar como? o quê? Ficava de mãos abanando, esperando uma bandeja, um bule de chá que não aparecia. Até o barulho da louça, os gritos para a cozinha faziam falta. Então ia para a porta das confeitarias espiar os colegas de mais sorte, que trabalhavam, com uma inveja deles, do cansaço deles! Meu garoto mais moço, de quatro anos, veio me servir, de brincadeira, dizendo que agora eu é que era o freguês, queria com pão alemão ou pão de Petrópolis? Mineral com gás ou sem gás? Quis achar graça, mas foi me subindo um nervoso, empurrei a mão do garoto, a louça caiu no chão, se espatifou, ele saiu chorando... Sabe que mais? A patroa me dizendo sempre: “Belisário, some de minha presença que tu está me enchendo!”. Sumir pra onde? Gostei não, doutor. Descanso de garçom é fogo. Quer mais umas torradinhas?

(Carlos Drummond de Andrade. Caminhos de João Brandão, 2016.)


Uma característica recorrente no gênero crônica que está presente no texto de Drummond é



a)

o registro informal.

b)

a linguagem hermética.

c)

o tom moralizante.

d)

a crítica política.

e)

o viés metalinguístico.

Resolução

a) Correta. O Modernismo, ao buscar romper com padrões formais e tendências estéticas vigentes, propôs uma remodelação da literatura, o que ocorreu, dentre outros aspectos, por meio da linguagem. Nesse período, a linguagem utilizada buscava fugir de padrões rígidos e se aproximava da variedade coloquial, típica do povo brasileiro. Drummond, alinhado à vanguarda modernista, escreveu em versos livres, despreocupado com métrica e rima. Ao abordar temas cotidianos – como ocorre na crônica “Descanso de Garçom” –, o autor faz uso de um registro coloquial, sem vocabulários eruditos ou preciosismo formal, característica recorrente em suas obras.

b) Incorreta. Hermético diz respeito a algo de difícil compreensão; obscuro; enigmático. Drummond, ao longo de sua trajetória literária, propôs-se a usar uma linguagem oposta à hermética.

c) Incorreta. Não há tom moralizante na crônica. O texto, na verdade, propõe uma reflexão a partir de um evento cotidiano.

d) Incorreta. Embora a crítica política seja uma característica presente em algumas obras de Drummond, tal aspecto não é notado em “Descanso de Garçom”.

e) Incorreta. Não ocorre viés metalinguístico (quando o sistema - linguístico, por exemplo - faz referência a ele mesmo) na crônica.