FAMÍLIA
Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.
A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda noite
e a mulher que trata de tudo.
O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.
Carlos Drummond de Andrade. Alguma poesia.
No poema de Drummond,
a) |
a hierarquização dos substantivos que compõem a primeira estrofe tem a função de situar essa família na sociedade escravagista do século XIX. |
b) |
a repetição de um verbo de ação, em contraste com o caráter nominal dos versos, destaca a serventia da figura feminina na organização familiar. |
c) |
a ausência de menção direta ao homem produz um retrato reativo à família patriarcal, por salientar o protagonismo social da mulher. |
d) |
o modo como os elementos que compõem a terceira estrofe estão relacionados permite inferir a prosperidade econômica familiar. |
e) |
o enquadramento da mulher no ambiente doméstico lança luz sobre um regime social que favorece a realização plena das potencialidades femininas. |
a) Incorreta. Os substantivos da primeira estrofe, inicialmente, apresentam uma hierarquização, uma vez que se referem primeiramente às crianças da família, ocupando um lugar de superioridade, seguidas pelas empregadas e os animais. Entretanto, essa hierarquização é quebrada quando a figura da mulher aparece no último verso, pois ela não é apresentada como inferior aos elementos anteriores, mas é a responsável pela ordenação do funcionamento da família. Já a caraterização da cozinheira e da copeira, respectivamente, como "preta" e "mulata", remete não exatamente à sociedade escravagista do século XIX, mas a uma herança escravocrata que ainda se fazia presente no século XX, quando o poema foi escrito.
b) Correta. Os versos do poema, com exceção daquele que se refere à mulher, são estruturados sem a presença de verbos (e, portanto, são nominais), como uma enumeração dos elementos que compõem o cotidiano da família anunciada no título. Já o verso "e a mulher que trata de tudo", repetido no final das estrofes, traz o único verbo do poema, que coloca a figura feminina como aquela responsável pela ação ("tratar de tudo"). Destaca-se, assim, a importância da mulher como o elemento responsável pela organização da família.
c) Incorreta. Há, no poema, menções diretas a homens, como "o agiota", "o leiteiro", "o turco" e "o médico". Já figura do marido fica pressuposta: o fato de ele não ser referido diretamente reforça a ideia de que a organização do lar é tarefa imposta à mulher. Além disso, não se pode afirmar que haja um protagonismo social da figura feminina: o poema apenas destaca seu papel dentro da dinâmica familiar.
d) Incorreta. A terceira estrofe já inicia com a menção a um agiota, demonstrando que a família possui dívidas e precisa de dinheiro emprestado a juros. Em seguida, nos versos três e quatro, "o bilhete branco de todas as semanas" e "a esperança sempre verde" remetem a uma tentativa recorrente de ganhar dinheiro por meio de jogos de azar. Esses dados excluem a ideia de uma família com prosperidade econômica.
e) Incorreta. O poema destaca o papel feminino dentro do ambiente familiar, esfera em que ela "trata de tudo". No entanto, tal função não favorece a realização plena de suas potencialidades; pelo contrário, restringe a atuação da mulher ao mundo doméstico.