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Questão 7 Unicamp 2023 - 1ª fase

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Questão 7

Bons dias!

Na última crônica da série “Bons dias!”, de 29 de agosto de 1889, série na qual um tema são as questões gerais em torno do curandeirismo, o narrador enuncia:

“Hão de fazer-me esta justiça, ainda os meus mais ferrenhos inimigos; é que não sou curandeiro, eu não tenho parente curandeiro, não conheço curandeiro, e nunca vi cara, fotografia ou relíquia, sequer, de curandeiro. Quando adoeço, não é de espinhela caída*, — coisa que podia aconselhar-me a curanderia; é sempre de moléstias latinas ou gregas. Estou na regra; pago impostos, sou jurado, não me podem arguir a menor quebra de dever público.”

(ASSIS, Machado de. Bons dias! Campinas: Editora da UNICAMP, p. 295, 2008.)

*espinhela caída: designação popular para doenças caracterizadas por dores pelo corpo (peito, costas e pernas), além de cansaço físico.


Na “profissão de fé”, feita pelo narrador da crônica no parágrafo citado, percebe-se



a)

a distinção do narrador como uma figura avessa ao curandeirismo, por crença na ciência dos filósofos e pensadores gregos e latinos, o que marca o tom crítico da série.

b)

a caracterização do narrador como uma figura superior à população em geral, o que ecoa o tom analítico das crônicas dessa série.

c)

a repetição exagerada da palavra “curandeiro” (e “curanderia”) no trecho, como marca estilística da simplicidade linguística das crônicas dessa série.

d)

a personificação gerada por “quando adoeço (...) é sempre de moléstias latinas ou gregas”, como marca do estilo empolado do narrador nessa série de crônicas.

 

Resolução

a) Incorreta. A aversão ao curandeirismo se deve à intenção do narrador em demarcar sua superioridade em relação ao cidadão comum que se consulta com curandeiros. A referência às moléstias latinas ou gregas não evidencia crença na ciência, mas apego a valores que promovem a distinção social do narrador.

b) Correta. No decorrer das crônicas de “Bons dias”, o cronista ficcional, criado por Machado de Assis, constrói uma imagem de superioridade e distinção em relação ao simples leitor. Ele valoriza suas boas maneiras e sua polidez como qualidades herdadas do berço as quais fazem dele alguém superior ao resto da população. Tais qualidades também contribuiriam para uma inteligência e perspicácia que superariam o senso comum. Essa imagem é reforçada no excerto da última crônica, em que o cronista insiste em afirmar que não tem nenhuma ligação com curandeiros. O curandeiro seria uma pessoa não habilitada para exercer a medicina e que se propõe a curar doenças e outros males por meio de rezas, beberagens milagrosas e outros rituais. Tal figura é bastante associada à cultura popular e, quando afirma não conhecer nenhum curandeiro, o cronista está justamente se distanciando dessa cultura. Além de se distanciar, ele demarca uma posição de superioridade quando afirma que não adoece de “espinhela caída”, doença por demais “popular”; pelo contrário, as enfermidades do narrador seriam mais “sofisticadas”, com nomes gregos e latinos, males mais adequados à posição de alguém que paga seus impostos, é jurado e cumpre com seus deveres públicos.

c) Incorreta. É incorreto considerar que o recurso à repetição seria uma marca de uma suposta simplicidade linguística, uma vez que, nesse trecho, tal recurso produz um efeito expressivo, planejado pelo narrador, que é o de expor sua aversão à figura da cultura popular do curandeiro. Além disso, é equivocado considerar que a simplicidade linguística seria uma marca das crônicas que, por vezes, manifestam uma linguagem altamente elaborada.

d) Incorreta. O trecho “quando adoeço (...) é sempre de moléstias latinas ou gregas” não constitui um exemplo de personificação, pois não atribui características humanas às doenças, apenas indica sua origem. Além disso, classificar o estilo das crônicas como “empolado” é ignorar o caráter irônico que perpassa os textos.