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Questão 10 Unicamp 2023 - 1ª fase

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Questão 10

O Marinheiro intertexto

Texto 1

“Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas (...)”

(PESSOA, Fernando. O Marinheiro. Campinas: Editora da UNICAMP, p. 59, 2020.)

Texto 2

“Na capacidade para amoldar-se a todos os meios, em prejuízo, muitas vezes de suas próprias características raciais e culturais, revelou o português melhores aptidões de colonizador do que os demais povos (...). Os portugueses precisaram anular-se durante o longo tempo para afinal vencerem. Como o grão de trigo dos Evangelhos, o qual há de primeiramente morrer para depois crescer e dar muitos frutos.”

(HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 224, 2016.)


Levando em conta os textos 1 e 2, assinale a alternativa correta.



a)

O marinheiro e o colonizador português são capazes de criar valores e paisagens, reinventando-se, a ponto de forjarem outra realidade e outra memória do passado.

b)

O marinheiro e o colonizador português constroem novos mundos e valores no além-mar, mas são incapazes de anular sua identidade original.

c)

O marinheiro e o colonizador português, apesar do esforço de construção cultural, limitam-se a transpor integralmente o que aprenderam no passado para as configurações do futuro.

d)

O marinheiro e o colonizador português acabam anulando suas identidades originais, representando, assim, figuras inquestionáveis de niilismo.

Resolução

a) Correta. A capacidade do marinheiro e do colonizador de se reinventar, criando novos valores e paisagens a ponto de forjarem outra realidade e outra memória do passado, pode ser percebida em ambos os textos apresentados. No texto 1, de Fernando Pessoa, o personagem do marinheiro, sozinho em uma ilha, passa a imaginar uma outra “pátria que nunca tivesse tido” – um outro país, com outras pessoas e outras paisagens que veio a se tornar mais real que a própria pátria onde ele crescera. Assim, a pátria real perde sua existência para dar lugar à pátria sonhada. Um movimento semelhante é percebido na descrição que Sérgio Buarque de Holanda faz do colonizador português, capaz de adaptar-se a todos os meios, “em prejuízo de suas próprias características raciais e culturais”; dessa forma, em sua história colonial, os portugueses tiveram que se anular, para, ao final, vencer, isto é, criar uma nova pátria, um império para além de suas fronteiras.

b) Incorreta. Na peça de Fernando Pessoa, o marinheiro, de fato, anula sua identidade original, pois, além de não conseguir mais se lembrar de sua antiga pátria, não consegue imaginar ter vivido uma outra vida senão aquela transcorrida na pátria imaginada. No texto 2, o autor menciona a anulação da identidade do colonizador português ao afirmar que ele é como o grão de trigo que tem que morrer para dar frutos, ou seja, a identidade original deve ser apagada para que outra surja em seu lugar.

c) Incorreta. Em ambos os casos, tanto o marinheiro como o colonizador apagam o seu passado para, assim, criar uma nova realidade. Desse modo, não lhes seria possível transpor o que aprenderam no passado para o futuro.

d) Incorreta. Em linhas gerais, o niilismo pode ser tomado como uma corrente filosófica que nega todo e qualquer sentido para o mundo e para experiência humana. Tal filosofia considera que a vida seria desprovida de propósito, tornando-se, assim, vazia e sem finalidade. Não é possível considerar que as figuras do marinheiro e do colonizador sejam representantes dessa concepção, pois, após anular suas identidades originais, eles foram capazes de criar novas realidades, dando um novo sentido a elas. Nesse sentido, tais figuras poderiam, portanto, ser tomadas como símbolos do ser humano que questiona e destrói a realidade que lhe é imposta e é capaz de criar um novo sentido para o mundo.