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Questão 3 Fuvest 2022 - 2ª fase

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Questão 3

Ambiguidade e Polissemia Subordinação poesia e música

Ela desatinou

 

Ela desatinou

Viu chegar quarta-feira

Acabar brincadeira

Bandeiras se desmanchando

E ela inda está sambando

 

Ela desatinou

Viu morrer alegrias

Rasgar fantasias

Os dias sem sol raiando

E ela inda está sambando

 

Ela não vê que toda gente

Já está sofrendo normalmente

Toda a cidade anda esquecida

Da falsa vida da avenida onde

 

Ela desatinou

Viu chegar quarta-feira

Acabar brincadeira

Bandeiras se desmanchando

E ela inda está sambando

 

Ela desatinou

Viu morrer alegrias

Rasgar fantasias

Os dias sem sol raiando

E ela inda está sambando

Quem não inveja a infeliz

Feliz no seu mundo de cetim

Assim debochando

Da dor, do pecado

Do tempo perdido

Do jogo acabado

Chico Buargue de Hollanda, 1968.

a) Explique quais são os universos em oposição apresentados na letra da canção e exemplifique com dois versos.

b) Considerando a ambiguidade presente no verso "Os dias sem sol raiando", transforme a oração reduzida de gerúndio em duas possíveis orações desenvolvidas, contemplando os diferentes sentidos do verso.



Resolução

A questão apresentava a letra da música “Ela desatinou” de Chico Buarque de Hollanda, composta, segundo informa a própria questão, em 1968.

a) Existem dois universos apresentados na letra. Um permeado pela fantasia, na qual se vivencia um mundo alegre e festivo, o qual é evocado pelos termos “brincadeira”, “sambando”, “alegrias”, “fantasias”, “sol raiando”, “feliz”, “mundo de cetim” e “jogo”, os quais remetem à presença do Carnaval, evento de festa e alegria, no qual os participantes se desprendem de obrigações e da realidade. Ele fica evidente pelo campo semântico suscitado pelos vocábulos anteriores e também pela marcação da quarta-feira como o momento que assinala o fim dessa festividade, numa referência à quarta-feira de Cinzas (data que marca o início do período da Quaresma e fim da festa do Carnaval). Podemos explicitar a presença desse universo no verso “E ela inda está sambando”, o qual marca a insistência da jovem em permanecer nesse âmbito lúdico, no desvario, o desatino evocado no título. Ele é anteposto à sua antítese - o outro universo - evocado pelos termos “desmanchando”, “morrer”, “rasgar”, “sofrendo”, “falsa vida da avenida”, “infeliz”, os quais marcam que as alegrias antes apresentadas foram terminadas e são apenas um “desatino”, a perda da razão da personagem retratada, uma fuga para um ludibriamento que não se constitui como real, como se pode explicitar nos versos “Da falsa vida da avenida onde” ou ainda “(toda gente) Já está sofrendo normalmente”. Por eles, pode-se notar a crítica do compositor ao comportamento alienado da personagem (e de “toda a cidade” que “anda esquecida”) em se deixar envolver pelas fantasias e não se atentar ao contexto vivido, da “falsa vida”, “da dor”, os quais podem remeter ao contexto político do ano de 1968, ano da promulgação do AI-5, que recrudesceu a ditadura militar no Brasil.

b) Considerando o contexto apresentado, há duas leituras ambíguas que devem ser observadas, a primeira relacionada ao sentido do termo ‘raiar’, o qual pode significar “nascer”, “surgir no horizonte” ou “irradiar”, “brilhar”, “reluzir”. A segunda situa-se na posição e vínculo da oração em si, a qual pode estar relacionada ao vocábulo “dia” ou a “sol”, classificando-se, em ambos os casos, como oração subordinada adjetiva restritiva reduzida de gerúndio. Desse modo, ela poderia ser desenvolvida da seguinte maneira: “Os dias que raiavam sem sol” e “Os dias sem sol que raiava”. Na primeira reconstrução, o sentido reside na ideia dos dias que nascem na tristeza, no universo da realidade, sem brilho e irradiação. São dias os quais, embora surjam, apresentam-se opacos e turvos em razão do contexto do entorno. Na segunda reconstrução, por sua vez, os dias apresentam um sol, contudo, trata-se de um sol que não raia, que é “da dor”, “do tempo perdido”, “do jogo acabado”, indicando a continuidade e a falta de esperança das pessoas que estão “sofrendo normalmente” nos dias que nascem, mas que estão embaciados num sol que não irradia.