“Lygia é uma escritora que trabalha com mistérios e pequenas revelações. Porém não se entenda errado: sua escrita não é religiosa, nem mística. Se há religiosidade, é no modo como ela escava a banalidade em busca de seu miolo. Se há misticismo, ele se esconde em sua inclinação para valorizar as zonas subterrâneas da existência.”
(José Castello, “Lygia na penumbra” in Seminário dos Ratos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 170.)
“Etimologicamente, o grego alegoria significa ‘dizer o outro’, dizer alguma coisa diferente do sentido literal. Regra geral, a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga com sentidos duplos e figurados, sem limites textuais (pode ocorrer num simples poema como num romance inteiro), pelo que também tem afinidades com a parábola e a fábula.”
(Adaptado de Carlos Ceia, E-dicionário de termos literários. Disponível em https://edftl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/alegoria. Acessado em 18/08/2021.)
a) No conto “Seminário dos ratos”, há um fato banal que se torna extraordinário no percurso narrativo. Descreva esse fato e apresente dois elementos do enredo que colaboram para a construção do conflito narrado.
b) Há, no conto de Lygia Fagundes Telles, a elaboração de uma alegoria. Identifique qual é o elemento central dessa alegoria e explique seu sentido, considerando o período em que o conto foi publicado.
a) Tendo em vista o percurso narrativo de “Seminário dos ratos”, pode-se considerar que a realização do “VII Seminário dos Roedores” é, em si, o fato banal que virá a se tornar extraordinário. Essa banalidade é expressa na informação de que se trata do sétimo Seminário, ou seja, na situação ficcional retratada, a invasão de ratos nas cidades e a organização de reuniões com o objetivo de combatê-los já haviam se tornado episódios comuns na rotina da sociedade. Os próprios jornais citados na conversa entre o Chefe das Relações Públicas e o Secretário do Bem Estar Público e Privado mostram o quanto tais reuniões já haviam se tornado banais, visto que criticam o governo por não ter resolvido o problema, pois, embora estivessem já no sétimo Seminário, a “população ratal” havia se multiplicado sete mil vezes após a realização do primeiro encontro. No decorrer da narrativa, porém, o VII Seminário ganha proporções extraordinárias, pois, os ratos, de forma aparentemente organizada, invadem o casarão onde o evento estava sendo realizado, matam os participantes, destroem tudo e, ao final, se reúnem na sala dos debates com as luzes acesas. Dessa forma, o que seria um Seminário dos humanos sobre os roedores, se transforma num seminário organizado pelos próprios ratos sobre os humanos.
Dentre os elementos do enredo que colaboram para a construção do conflito narrado, pode-se citar o fato de que o Seminário foi organizado numa mansão localizada no campo, distante do contexto urbano, o que contribui para a sensação de isolamento. Além disso, os eventos relacionados à invasão dos ratos começaram a ocorrer no início da noite, momento propício para a manifestação de acontecimentos extraordinários. Pode-se mencionar também a ocorrência de barulhos estranhos percebidos inicialmente pelo Secretário que os compara a tremores de intensidade variada; num primeiro momento, somente esse personagem percebia tais barulhos enquanto o Chefe das Relações Públicas dizia não ouvir nada. Essa disparidade de percepções contribui para a criação de um clima de mistério na narrativa. Outros acontecimentos ajudam a construir o conflito do conto: o Diretor das Classes Conservadoras armadas e desarmadas sente um cheiro estranho nas dependências do casarão e reclama que o telefone está mudo, elementos que anunciam a presença dos ratos e aumentam a percepção de isolamento. Diante da notícia de que os ratos haviam invadido a cozinha, o Chefe das Relações Públicas decide ir de carro até a cidade procurar ajuda, entretanto, é informado que os carros não podem sair, pois os cabos foram todos roídos. O próprio relato do cozinheiro apresenta elementos insólitos, pois, durante a invasão da cozinha, os ratos aparentavam adotar comportamentos humanos, sendo que um deles ficou em pé para atacar o cozinheiro. Todos esses episódios podem ser apontados como elementos que contribuem para a construção do conflito do conto, uma vez que permitem supor que a invasão dos ratos foi planejada e organizada pelos próprios roedores.
b) A coletânea de contos “Seminário dos Ratos”, de Lígia Fagundes Teles, foi publicada em 1977, num dos períodos mais difíceis da ditadura cívico-militar instaurada no Brasil. De acordo com a definição de Ceia, para quem “a alegoria reporta-se a uma história ou a uma situação que joga com sentidos duplos e figurados”, pode-se considerar a narrativa de Teles como uma alegoria desse período da história brasileira. O elemento central dessa alegoria são os ratos que invadem o casarão, eliminam os organizadores do evento e tomam o controle, realizando o seu próprio seminário. Considerando que os responsáveis pelo Seminário eram membros do governo e autoridades que representavam o poder estabelecido, pode-se propor a hipótese de que a narrativa seja uma fábula a respeito da tomada de poder por parte do povo. Nesse sentido, os ratos representariam a população marginalizada e desprezada pelos donos do poder que agiriam de maneira secreta com a finalidade de exterminá-la. Sozinhos, os ratos não têm força, são perseguidos e facilmente acuados, porém, ao se unirem e agirem de maneira organizada, tornam-se tão poderosos a ponto de conseguirem vencer seus opressores e tomarem o poder. Esse seria, portanto, um dos sentidos possíveis do conto que, ao apelar para a narrativa de eventos fantásticos e extraordinários, apontaria para uma possível ação política contra a ditadura.