“Quando o batel alcançou a boca do rio já estavam ali 18 ou 20 homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas flechas. Vinham todos rijos para o batel, mas Nicolau Coelho lhes fez sinal para que pousassem os arcos e eles os pousaram. Ali não pudemos entender a fala deles nem os ouvir direito, por o mar quebrar na costa.”
(Pero Vaz de Caminha, Carta de achamento do Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2021, p. 64.)
“A primeira cena do contato, em que um imaginado ruído do mar impede a audição, vai se replicar pelo restante da carta, em que outros discursos indígenas, como a possante oratória dos antigos tupi, serão ignorados, não compreendidos ou observados com perplexidade. Numa outra cena da carta de Caminha, um ancião, visivelmente um líder tupi, recepciona os viajantes com um discurso, encarado com espanto por Pedro Álvares Cabral, que lhes vira as costas e segue sua caminhada pela ‘nova terra’.”
(Adaptado de Sheila Hue, Pero Vaz de Caminha, o ouro e as vozes silenciadas dos indígenas. Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/pero-vazde-caminha-ouro-as-vozes-silenciadas-dos-indigenas-25155244. Acessado em 16/08/2021.)
a) Identifique, na Carta de Pero Vaz de Caminha, dois aspectos fundamentais do projeto colonizador português. Explique esses aspectos.
b) Explique as duas cenas mencionadas na Carta de Caminha, relacionando-as à situação atual dos povos indígenas.
a) Na carta de Achamento, destinada ao rei dom Manuel, ao relatar o encontro com os indígenas, Caminha destaca que eles estavam “todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas”. Essa observação evidencia um dos aspectos fundamentais da colonização portuguesa, na medida em que a nudez dos indígenas foi primeiramente interpretada como um sinal de sua inocência; partindo desse pressuposto, os portugueses consideram-se imbuídos de uma missão divina, qual seja, a de catequizar os índios e convertê-los ao Cristianismo. Dessa forma, cobrir sua nudez significava também impor a cultura cristã aos nativos para que eles abandonassem um modo de vida considerado bárbaro e não civilizado. A menção ao fato de que os índios pousaram os seus arcos diante do sinal de Nicolau Coelho evidencia um outro importante aspecto da colonização portuguesa. Com esse relato, o escrivão pretende informar ao rei como os portugueses deverão proceder com os nativos que aparentavam ser dóceis e submissos. Dessa forma, ele assinala que os colonizadores vão determinar os termos da relação com os índios, impondo seu domínio sobre esses povos, os quais pareciam acatar suas ordens sem apresentar resistência.
b) A cena em que um dos membros da frota de Cabral faz sinal para que os índios baixassem suas armas evidencia uma tentativa de dominação por parte dos colonizadores. Os sentidos desse gesto ecoam ainda hoje no Brasil contemporâneo, na medida em que as populações originárias são despojadas de recursos fundamentais para sua subsistência. Essa expropriação ocorre através da privação de recursos materiais como a água e a terra, necessárias para que tais populações possam manter seus modos de vida de forma autônoma. De fato, os conflitos relacionados às demarcações de terras indígenas, bem como a invasão desses territórios pelo agronegócio e pelo garimpo são um dos maiores problemas enfrentados pelos povos indígenas no Brasil contemporâneo.
Na cena em que os colonizadores tentam estabelecer uma comunicação verbal com os nativos, Caminha justica a não compreensão por parte dos portugueses mencionando o barulho do mar. Hue considera que tal motivo é imaginário, visto que a não compreensão deve-se ao fato de os navegantes desconhecerem o idioma indígena. Nesse ponto, verifica-se o quanto as diferenças culturais pesam desfavoravelmente para os indígenas que, até mesmo no contexto contemporâneo, não são compreendidos pela sociedade brasileira que continua ignorando não apenas sua língua, como também sua cultura e seus modos de vida. Num contexto de opressão, os povos indígenas do Brasil são silenciados e impedidos de se expressar de acordo com sua cultura e visão de mundo, o que configura uma espécie violência simbólica relacionada ao apagamento de sua memória.