O excerto a seguir é da música Ismália, do artista Emicida, e é cantada no documentário AmarElo – é tudo pra ontem. O trecho remete à chacina de Costa Barros, no Rio de Janeiro, em 2016. Em participação especial, Fernanda Montenegro declama o poema Ismália, de Alphonsus de Guimaraens (1870-1894), inserido na música do rapper.
Emicida:
Cinco vida interrompida
Moleques de ouro e bronze
Tiros e tiros e tiros
O menino levou 111
Quem disparou usava farda (Ismália)
Quem te acusou nem lá num tava
(Ismália)
É a desunião dos preto junto à visão
sagaz (Ismália)
De quem tem tudo, menos cor,
onde a cor importa demais
Fernanda Montenegro:
"Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.
No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...
E, num desvario seu,
Na torre, pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...
E, como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar..."
Emicida:
Olhei no espelho, Ícaro* me encarou:
"Cuidado, não voa tão perto do sol
Eles num guenta te ver livre,
imagina te ver rei"
O abutre quer te ver no lixo pra dizer:
"Ó, num falei?!"
No fim das conta é tudo Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
Ter pele escura é ser Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
(Terminou no chão)
*No mito grego, Ícaro e Dédalo ficaram presos num labirinto, então construíram asas artificiais com cera e penas para fugirem voando. Dédalo alertou o filho para não voar perto do Sol, pois a cera poderia derreter; nem perto do mar, o que deixaria suas asas pesadas, fazendo-o cair. Ícaro não ouviu o conselho do pai e morreu no mar. |
a) Quem são as “Ismálias” na música de Emicida? Transcreva dois versos desse rap que justifiquem a sua resposta.
b) O excerto traz imagens simbólicas do voo. Explique o conselho de Ícaro na música, considerando o poema declamado e a denúncia de Emicida nesse rap.
a) No poema “Ismália”, de Guimaraens, grosso modo, é apresentada a figura da moça que sonha e procura alcançar a visão que tem do céu, da Lua, do plano superior. Em seu desvario, atira-se da torre em direção ao reflexo da Lua ansiada, o qual está projetado no mar. Assim, seu corpo retorna ao plano material, enquanto sua alma sobe ao céu, ao plano imaterial. Diferentemente da abordagem do poeta simbolista, Emicida, em sua releitura do poema, detém-se na visão do sonho não alcançado, do retorno à realidade crua e mortífera e, desse modo, resgata Ismália como aquela que procura o céu, mas acaba no chão, morta. Para ele, as ismálias são as pessoas referenciadas e ecoadas desde o início do poema, na primeira estrofe, até a totalização, ao final do trecho, em pessoas de pele escura. Essa leitura fica explícita no trecho “No fim das conta é tudo Ismália, Ismália”, pois ele marca a finalização da interlocução estabelecida com Ícaro, o qual lhe alerta que “eles num guenta te ver livre”, no qual esse interlocutor é o próprio rapper, o qual representa as negritudes. Outro trecho que deixa essa leitura explícita é “Ter pele escura é ser Ismália, Ismália”, no qual ele atribui diretamente à personagem do poema a existência numa pele escura, afirmando que essa ismália - a de pele escura - acaba no chão - morta, porque quis tocar o céu - sonhou e quis alcançar um lugar não inferiorizado. Cabe ainda acrescentar que seria possível apontar também alguns trechos da primeira estrofe, nos quais Ismália é referenciada entre parênteses, como um eco. Neles, é estabelecida uma interlocução com as vítimas da chacina e, ao mesmo tempo, essas figuras são relacionadas com essa ismália que ali aparece.
b) Na música, Ícaro aconselha o rapper a não voar tão perto do Sol, ou seja, a não buscar o sonho mais alto, não desfrutar tranquilamente, sem comedimentos, da liberdade (símbolo do voo) de buscar as grandes conquistas (o Sol). Para isso, justifica sua admoestação dizendo que “eles”, a parte dominante da sociedade e que discrimina as pessoas de pele escura - como fica explícito pela crítica do rapper - têm imensa dificuldade em vê-las livres, portanto, apresentariam ainda mais resistência caso alçassem um lugar de “rei”, os sonhos mais altos e as conquistas mais grandiosas. Dessa forma, o conselho de Ícaro, de forma simbólica, contribui para sedimentar a denúncia explícita que Emicida constrói a respeito da exclusão e massacre às quais é submetida a população negra e periférica.