Transcrição da primeira legenda: “Mas também, quando a gente se lembra que eles assentam um pobre cristão naquele prato que travam no beiço e o engolem como se fosse feijoada!…Que horror!”
Transcrição da segunda legenda: “Mas quem diria! Esses antropófagos é que ficaram com medo de serem devorados pela curiosidade pública. Só a muito custo o diretor do museu impediu que eles fugissem."
(Angelo Agostini, Charge sobre a Exposição Antropológica, Revista Ilustrada, n. 310, 1882, p. 4-5.)
“A Exposição Antropológica Brasileira, ocorrida em 1882, insere-se no quadro das grandes Exposições Internacionais, bem como das exposições etnográficas desenvolvidas ao longo do século XIX. Marcadas pela prática colecionista e pela ambição de conhecer, colonizar e categorizar o mundo, as exposições etnográficas expunham objetos e muitas vezes pessoas de culturas exóticas e distantes. Na ocasião, sete índios botocudos, acompanhados de intérprete, foram enviados para o Rio de Janeiro com a finalidade de serem expostos ao público e também estudados pelos pesquisadores do Museu Nacional. Os Botocudos pareciam estar ali para performar o mito do primeiro contato ao serem apresentados como selvagens, bárbaros, violentos e grotescos. Apesar de terem vivido no aldeamento do Mutum, portanto sob o jugo e tutela do Estado, foram lidos pelos habitantes da corte como se estivessem tendo seu primeiro contato com os brancos naquele momento, já que, segundo os jornais, estavam com medo e queriam fugir. Nessa exposição os Botocudos representavam por definição “o outro”, a imagem que espelha exatamente o contrário do Brasil civilizado.”
(Adaptado de Marina Cavalcanti Vieira, “A Exposição Antropológica Brasileira de 1882 e a exibição de índios botocudos: performances de primeiro contato em um caso de zoológico humano brasileiro”, in Horizontes antropológicos, n. 53, 2019, p. 317-357.)
a) Considerando o contexto das exposições da época, explique qual o objetivo de apresentar os indígenas em um zoológico humano durante a Exposição Antropológica, de 1882. Analise criticamente a proposta da Exposição.
b) Há uma contradição entre os estereótipos sobre os Botocudos representados na charge e sua situação concreta no contexto de 1882. Relacionando a imagem com o excerto, identifique os atores das ações violentas na charge e explique essa contradição.
a) Segundo o texto, a Exposição Antropológica Brasileira, ocorrida em 1882, “insere-se no quadro das Grandes Exposições Internacionais, bem como das exposições etnográficas desenvolvidas ao longo do século XX”, e foram “marcadas pela prática colecionista e pela ambição de conhecer, colonizar e categorizar o mundo”. Sem dúvida. Porém, há de se lembrar que tudo isso encontra-se em um contexto ainda maior: a visão positivista de ciência que perpassava o cenário europeu e, também, o cenário nacional, no sentido de "pintar" tais cenários sob a ótica do darwinismo social.
Segundo essa visão, promovida por autores como Saint-Simon e Augusto Comte, alguns povos representariam a “primeira etapa” da humanidade, tosca e bárbara, diferente do status já alcançado, por exemplo, pelas comunidades europeias. Nesse sentido, o objetivo de apresentar os indígenas em um zoológico humano durante a Exposição Antropológica Brasileira de 1882, era o de mostrar a todos “exemplares” dessa “primeira situação” humana, uns “outros”, uns “não civilizados” e, de acordo com o que comumente se pensava, um animal selvagem e perigoso, na sua forma mais crua, sem contato com brancos da dita civilização.
Esse objetivo mostra-se, sob todos os pontos de vista da atual antropologia e da atual sociologia, tolo e mal fundamentado, assentando-se na mais que contestada ideia de que podemos dividir os grupos humanos em superiores e inferiores, e que a história da humanidade, segundo sua lógica sociocultural, pode ser interpretada por “etapas” e “evoluções”. Tratava-se, portanto, de um objetivo discriminatório e etnocêntrico.
b) Os botocudos, no excerto, são apresentados como bestas, como selvagens. São apresentados como seres cruéis e violentos. Eles seriam não civilizados que, exatamente por essa condição, colocariam o homem branco (religioso e de “bom costume”) em apuros. Não por acaso, a imagem 1 mostra um botocudo colocando um homem branco em sua boca, em um claro intuito de devorá-lo.
Porém, podemos problematizar esse estereótipo, criado pelo próprio homem branco, a partir de duas situações, pelo menos. Em um primeiro momento, podemos citar a situação concreta dos botocudos na segunda metade do século XIX. Como muitas outras etnias indígenas, na época mencionada e ainda hoje, os botocudos já estavam sob a tutela do Estado brasileiro, constrangidos que foram, pela imposição de força do homem branco, a viverem em aldeamento criado a mando do Império, sem nenhum respeito e compreensão cultural. Em um segundo momento, podemos citar a imagem de número 2, onde vemos um homem branco puxando um indígena botocudo pelos lábios, no sentido de cerceá-lo e impor-lhe algum tipo de coerção, quando o mesmo quer sair de um ambiente que, para ele, era hostil. Em suma: aquele que trata “o outro” como selvagem é, ele mesmo, o autor da selvageria. Infelizmente, uma história recorrente no Brasil quando a pauta é o indígena.