A grande recusa do corpo não se dá apenas no campo da sexualidade. A luxúria passa a ser cada vez mais associada à gula. Por isso, as recomendações da Igreja passam a se dirigir tanto à carne quanto à boca. Os pecados da carne e os pecados da boca passam a caminhar de mãos dadas. Assim, a embriaguez é reprimida também como forma de controlar os “camponeses e os bárbaros", muito apreciadores de bebedeiras. A indigestão é igualmente associada ao pecado. A abstinência e o jejum dão o ritmo, portanto, do "homem medieval". Gordo oposto ao magro, Carnaval que se empanturra contra Quaresma que jejua. A tensão atravessa o corpo medieval.
(Adaptado de Jacques Le Goff e Nicolas Truong, Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 58 e 59.)
A partir da leitura do texto e de seus conhecimentos sobre Idade Média, responda às questões.
a) Cite e explique as tensões, que o texto menciona, relacionadas, no período medieval, ao corpo.
b) Cite e explique duas diferenças, entre a sociedade medieval e a sociedade contemporânea, no que diz respeito à percepção sobre o corpo ideal.
a) No período medieval, a principal tensão relativa ao corpo reside na dicotomia entre corpo e alma, representativa, no limite, da oposição entre o mundo material e o mundo espiritual. Paradoxalmente, por um lado, na perspectiva religiosa, o corpo era abençoado e glorificado - quando se tratava do corpo de Cristo -, mas também desprezado, condenado e humilhado, já que estava fortemente associado à ideia de pecado. A partir da separação entre corpo e alma, considerava-se também que o corpo era a prisão ou mesmo o veneno daquela, sendo relegado ao campo da recusa, da negação e da repugnância. O controle do corpo exposto no texto reforça a ideia deste como um local de pecado e danação, enquanto a alma estava relacionada à pureza e era considerada superior. Assim, podemos afirmar que a alma exerceu uma função hierárquica superior ao corpo no período medieval e, segundo os autores, a ideologia anticorporal do cristianismo institucionalizado se esforçou para conter as práticas populares e gradativamente a Igreja passou a dominar o corpo. Os exemplos mencionados no texto - lúxuria, gula e embriaguez - são contidos pela Igreja através da instituição de jejuns, restrições, períodos de oração e reclusão, num movimento que evidencia as tensões que atravessam o corpo medieval.
b) A sociedade medieval e a sociedade contemporânea apresentam profundas divergências no que diz respeito à percepção sobre o corpo ideal e às formas de atingi-lo. No contexto medieval, a relação e a interpretação do corpo era regulamentada e codificada pela Igreja Católica, sendo central a separação entre alma e corpo. A regulamentação imposta aos corpos não visava a obtenção de determinado resultado estético ou saudável, mas continha um propósito religioso, de modo que a preocupação com a alimentação e a renúncia de alimentos possuía um caráter de superação do material e alcance do espiritual. Esperava-se dos homens e mulheres medievais que evitassem o nu e os excessos alimentares, além do cuidado com as práticas corporais (principalmente com o sexo) e esportivas (que o corpo não fosse mostrado em público). Assim, podemos afirmar que o "corpo ideal" da perspectiva medieval era, na verdade, o corpo glorioso, ou seja, o corpo, imperfeito, que se submetia às regras da alma, tomada como perfeita, e pela dominação da alma o corpo se aperfeiçoaria. Já na sociedade contemporânea, impera o chamado culto ao corpo, segundo o qual o indivíduo passa a ser considerado responsável por sua aparência física a partir de várias formas de construções corporais presentes no mercado, tais como os exercícios físicos, dietas, tratamentos de beleza e cirurgias plásticas. Assim, incentiva-se a busca de um corpo que esteja em consonância com os padrões de beleza contemporâneos que associam beleza, juventude e saúde, valores considerados fundamentais na sociedade atual.