“Mas, enquanto isso, e os escravos? Eles ouviam falar da Revolução e conceberam-na à sua própria imagem. (...) Antes do final de 1789, houve levantes em Guadalupe e na Martinica. Já em outubro, em Forte Dauphin, um dos futuros centros da insurreição de São Domingos, os escravos estavam se agitando e realizando reuniões de massas nas florestas durante a noite. Na Província do Sul, observando a luta entre os seus senhores a favor e contra a Revolução, eles mostraram sinais de inquietação. (...) Pela dura experiência, aprenderam que esforços isolados estavam condenados ao fracasso, e nos primeiros meses de 1791, dentro e nos arredores de Le Cap, eles estavam se organizando para a Revolução. O vodu era o meio da conspiração. Apesar de todas as proibições, os escravos viajavam quilômetros para cantar, dançar, praticar os seus ritos e conversar; e então, desde a Revolução, escutar as novidades políticas e traçar os seus planos.”
(Adaptado de Cyrik Lionel Robert James, Os Jacobinos Negros. Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 87-91.)
Com base no excerto e em seus conhecimentos sobre as revoluções atlânticas de finais do século XVIII e início do XIX,
a) cite e analise dois elementos característicos dos modos de ação política da população escravizada do Haiti (São Domingos).
b) identifique e explique dois impactos da revolução haitiana no mundo Atlântico.
a) Em primeiro lugar, pode-se mencionar como uma característica do modo de ação política da população escravizada no Haiti a organização coletiva de levantes, o que conferia maior força e oportunidade do que as ações individuais. Inclusive, a própria Independência Haitiana e a abolição da escravidão foram resultados diretos de uma longa luta armada ocorrida entre 1791 e 1804, configurando um episódio singular na história das emancipações na América pelo protagonismo dos ex-escravos. Outra característica da organização política de tais cativos era a formação de quilombos (marronage, na literatura francesa), comunidades de escravos fugidos e que buscavam meios de subsistência material em suas comunidades. Tais quilombos frequentemente entravam em conflito com as forças coloniais, e serviam de inspiração para novas fugas e lavantes por toda a região de São Domingos. Ademais, pode-se mencionar o importante uso dos espaços religiosos para a socialização e organização política, a exemplo das reuniões vodu mencionadas pelo texto base. Embora fossem proibidas e frequentemente perseguidas pelas autoridades coloniais, estes nunca obtiveram êxito em suprimir em definitivo tais eventos religiosos. Nesses espaços, os escravizados encontravam tanto um senso de comunidade compartilhada e um local de comunicação com seus pares, o que muitas vezes permitia ultrapassava os limites físicos de uma determinada fazenda e de seu plantel de cativos. Para além da religião vodu, mesmo o catolicismo também garantia certos espaços de sociabilidade e comunhão dos cativos, como a "missa dos negros", ocorrida em Le Cap costumeiramente após a missa tradicional dos colonos. Tais episódios de comunhão inclusive geravam fortes críticas dos colonos haitianos, que acusavam religiosos como os Jesuítas de favorecerem os cativos e de incentivarem sua autonomia. Por fim, pode-se mencionar o ataque direcionado às fazendas e plantações dos proprietários, o que representava uma ação política para atingir a lucratividade da empresa colonial francesa e de seus proprietários.
b) Um impacto da Revolução Haitiana foi o enorme temor quanto a novas revoluções de escravos em outras áreas da América Colonial, medo conhecido como haitianização. No Brasil, o temor da haitianização foi notavelmente difundido entre os proprietários de escravos, o que influenciou a aprovação de medidas legais como o Código Criminal de 1830 - que determinava a pena de morte por enforcamento aos escravos envolvidos em insurreição - e a lei de 10 de junho de 1835, que também reforçava as punições aos escravos no Brasil. Outro impacto da Revolução Haitiana no mundo atlântico ocorreu no campo econômico, tendo em vista que desestruturou uma das mais proeminentes colônias francesas. Desta forma, a desorganização da produção local de produtos como açúcar, tabaco e café abriu espaço para a ascensão de seus competidores, a exemplo do Nordeste brasileiro. É possível também mencionar o impacto da Revolução Haitiana na aceleração do encerramento do Tráfico Atlântico de Escravos, tendo em vista que seu sucesso intensificou o temor quanto aos escravos africanos na América Colonial. Inclusive, a própria aprovação das Lei Feijó (1831) e Eusébio de Queirós (1850) teriam sido influenciadas pela Revolução Haitiana. Finalmente, pode-se reconhecer e analisar o impacto da Revolução na inspiração para a luta dos cativos em todo o continente americano, tendo em vista que a notícia do sucesso da Revolução foi rapidamente difundida e chegou aos ouvidos de escravzados em várias partes da América. No caso do Brasil, há casos de negros que circulavam ainda em 1805 com o retrato de Jean-Jacques Dessalines em medalhões pendurados em seu pescoço, o que desnuda a poderosa influência e simbolismo do evento ocorrido em São Domingos.