Durante muito tempo – e ainda hoje – despejou-se um discurso moralizante sobre os índios. Considerando os Aimorés, não se trata apenas de uma tribo nem de um mesmo grupo etnolinguístico; trata-se, antes, de uma denominação genérica que podia ser aplicada a vários grupos, em geral Tapuias. Neste rol de Tapuias, incluíam-se os que viriam a ser chamados de Botocudos durante o século XIX e Krenak no século XX. Há uma carência de fontes escritas em relação a esses Aimorés. O nome foi a marca forte que os registros históricos deixaram sobre esses grupos indígenas. Essas nomeações não eram assumidas por eles, sendo uma identidade atribuída pelos adversários.
(Adaptado de Marco Morel, A Saga dos Botocudos. Guerra, imagens e resistência indígena. São Paulo: HUCITEC, 2018, p. 44-45.)]
De acordo com a leitura do texto e seus conhecimentos, responda às questões.
a) Identifique e explique a crítica feita pelo autor do texto ao processo de construção da identidade Aimoré.
b) Explique a construção das identidades atribuídas pelo romantismo brasileiro aos indígenas no século XIX.
a) A crítica do autor decorre do fato de "Aimoré" não representar historicamente um grupo indígena ou etnolinguístico específico, mas sim uma denominação vaga e imprecisa atribuída a vários grupos diferentes pelos colonos portugueses. Diferentemente de certos grupos ameríndios que tiveram maior destaque nas descrições feitas pelos europeus, os Aimorés seriam caracterizados por uma documentação excessivamente vaga e bastante contraditória entre si, sendo frequentemente reduzidos a "feras", "violentos", "nômades" e "antropófagos" pelos poucos relatos. Desta forma, o autor destaca o cuidado na mobilização dessa identidade que, embora tenha se cristalizado no imaginário nacional ao longos dos séculos, e mesmo mobilizada pela literatura romântica nos anos de 1800, sua formação histórica teria sido através de uma documentação imprecisa e que dialogava com o imaginário europeu de um grupo indígena feroz, adequado aos princípios da "Guerra Justa" dos portugueses.
b) Após a Independência do Brasil (1822), a elite intelectual e política do Brasil se empenhou na construção de uma identidade nacional para o jovem país, fundamentada sobretudo na produção de uma história, uma geografia e de uma literatura que exaltasse os elementos específicos do Brasil. Nesse ímpeto, o Romantismo desempenhou papel crucial na construção de símbolos e do imaginário sobre as características brasileiras, escolhendo o índio como parte fundamental da cultura nacional. Para tal, os nativos tiveram uma representação e descrição idealizada, associados aos ideais de bravura, pureza, coragem e beleza, e vistos como protagonistas ao lado dos portugueses nos eventos responsáveis pela fundação do país. São exemplos de autores que contribuíram para a construção dessa imagem de "bons selvagens" aos indígenas Gonçalves Dias, autor de I-Juca Pirama, e José de Alencar, autor de O Guarani e Iracema. Tal esforço não ficava restrito à literatura, tendo em vista que o próprio IHGB também se destacava na reflexão sobre a contribuição indígena na formação nacional, e que as próprias elites políticas adotavam termos indígenas como parte simbólica de seu poder nos títulos de nobreza (como visconde de Camamu e visconde de Cairu, por exemplo). Por fim, é importante destacar que tal esforço e idealização dos indígenas na literatura era notoriamente divergente do tratamento dado pelo Estado brasileiro aos nativos, tendo em vista que continuavam excluídos de direitos básicos e que sofriam frequentementes incursões em suas terras por forças oficiais.