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Questão 4 Unicamp 2022 - 2ª fase - dia 2

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Questão 4

Escravidão no segundo reinado

Luís Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) foi um abolicionista, orador, jornalista e escritor brasileiro. Nascido de mãe negra e pai branco, foi, contudo, escravizado aos 10 anos de idade e permaneceu analfabeto até os 17 anos. Conquistou judicialmente sua liberdade e atuou na advocacia em prol dos escravizados. Entre seus poemas, lê-se:

Ciências e letras
Não são para ti
Pretinho da Costa
Não é gente aqui.

Em 2015, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo, concedeu-lhe o título de advogado. Em 2018, seu nome foi inscrito no Livro de Aço dos heróis nacionais, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves.

(Adaptado de Ligia Fonseca Ferreira, Luiz Gama autor, leitor, editor: revisitando as Primeiras Trovas Burlescas de 1859 e 1861. Estudos Avançados. 2019, v. 33, n. 96.)

A partir da leitura do texto e de suas reflexões,

a) liste e explique dois aspectos da relação entre origem social e formas de acesso ao mundo das ciências e letras no período em que Gama atuou;

b) cite e analise dois significados, no contexto do Brasil do século XXI, da concessão do título de advogado a Luiz Gama.



Resolução

a) A sociedade brasileira oitocentista era escravista e profundamente calcada nas relações de dominação pessoal (senhor-escravo), de modo que a distribuição de cargos públicos e de benefícios do Estado, por exemplo, dependia de favores pessoais prestados pelos detentores do poder. Assim, a origem social era determinante na configuração dos espaços sociais e era profunda a dificuldade enfrentada por negros, escravos ou libertos, no que se refere ao acesso ao mundo científico e literário, já que a integração dos afrodescendentes à elite cultural do Império era dificultada pelo racismo imperante no Brasil do século XIX. Nesse sentido, impunha-se a necessidade dos afrodescendentes de se valerem dos canais de poder e prestígio vigentes e se associarem entre si, como forma de superar as barreiras colocadas a eles. A inserção em redes de sociabilidade era fundamental para a facilitação dessa inclusão. Podemos citar como exemplo a maçonaria: dois importantes intelectuais negros, Luiz Gama e o escritor José Ferreira de Menezes, aderiram à Loja América, em São Paulo, fundada em 1868. Já em 1870 a instituição maçônica mantinha uma escola noturna que recebia libertos e alforriados. Assim, a emergência da intelectualidade negra se apoiou não só em conexões com as classes proprietárias mas também entre eles próprios, sendo muito comum a participação em diversas associações religiosas, políticas e literárias ao longo da vida, como forma de viabilizar a entrada e ocupação de determinados espaços intelectuais.
Vale destacar que a trajetória de Luiz Gama é sintomática da relação entre origem social e formas de acesso ao mundo das ciências e letras durante o Segundo Reinado (1840-1889). Em 1850, Luiz Gama tentou ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e teve seu pedido negado. Embora não exista um registro oficial da motivação da recusa, o racismo estrutural e as origens humildes de Gama foram determinantes na decisão. Diante de tal impedimento, Gama assistiu inúmeras aulas como ouvinte, frequentou assiduamente a biblioteca e, por fim, passou a atuar como rábula, título que autorizava um indivíduo sem diploma a exercer o direito. 
b) Tanto a concessão do título de advogado a Luiz Gama em 2015, como a recente outorga do título a ele de Doutor Honoris Causa póstumo pela USP (novembro de 2021), são atos que possuem considerável valor simbólico de reparação e reconhecimento. Tais atos dialogam com um contexto de forte permanência de estruturas racistas no Brasil do século XXI, evidenciado por drásticas estatísticas: somente 29% de alunos de pós graduação eram pretos ou pardos segundo balanço do MEC em 2019, além de 71,7% dos jovens fora da escola serem negros, de acordo com a PNAD Educação de 2019. Assim, ações simbólicas como essas são fundamentais para evidenciar e problematizar a permanência de estruturas racistas em nossa sociedade. Outro significado fundamental desse ato é o de ressaltar o protagonismo negro no movimento abolicionista. Luiz Gama foi um dos primeiros jornalistas a defender o fim da escravidão sem utilizar pseudônimos, além de tornar-se o maior especialista nas chamadas "causas da liberdade" e conseguir a libertação de mais de 500 escravizados. Assim, trazer à luz a trajetória de Gama tem o importante significado de combater narrativas que omitem a atuação de personagens negros e escravizados nos variados processos históricos. Nos anos subsequentes à Abolição, a conquista da liberdade formal com a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888 foi entendida como uma concessão da elite política da época, além de resultado da pressão estrangeira. No entanto, a historiografia recente se contrapõe a essa narrativa, destacando as trajetórias de homens negras e mulheres negras que participaram ativamente da abolição, a partir da articulação conjunta de estratégias e ações pela abolição. Nesse sentido, destacar a trajetória de Gama - assim como outros personagens que figuraram na luta abolicionista - é uma forma de reconhecer o protagonismo negro na luta contra a escravidão e recuperar o papel da população negra enquanto sujeitos da história.