Para responder às questões de 09 a 11, leia a crônica “Elegia do Guandu”, de Carlos Drummond de Andrade, publicada originalmente em 2 de novembro de 1974.
E se reverenciássemos neste 2 de novembro os mortos do Guandu, que descem a correnteza, a caminho do mar — o mar que eles não alcançam, pois encalham na areia das margens, e os urubus os devoram?
Perdoai se apresento matéria tão feia, em dia de flores consagradas aos mortos queridos. Estes não são amados de ninguém, ou o são de mínima gente. Seus corpos, não há quem os reclame, de medo ou seja lá pelo que for.
Se algum deles tem sorte de derivar pela restinga da Marambaia e ali é recolhido por pescadores — ah, peixe menos desejado — ganha sepultura anônima, que a piedade dos humildes providencia. Mas não é prudente pescar mortos do Guandu: há sempre a perspectiva de interrogatórios que fazem perder o dia de trabalho, às vezes mais do que isso: a liberdade, que se confisca aos suspeitos e aos que explicam mal suas pescarias macabras.
São marginais caçados pela polícia ou por outros marginais, são suicidas, são acidentados? Difícil classificá-los, se não trazem a marca registrada dos trucidadores ou estes sinais: mãos amarradas, amarrado de vários corpos, pesos amarrados aos pés. Estes últimos são mortos fáceis de catalogar, embora só se lhes vejam as cabeças em rodopio à flor d’água, mas os que vêm boiando e fluindo, fluindo e boiando, em sonho aquático deslizante, estes desesperaram da vida, ou a vida lhes faltou de surpresa?
Os mortos vão passando, procissão falhada. Eis desce o rio um lote de seis, uns aos outros ligados pela corda fraternizante. É espetáculo para se ver da janela de moradores de Itaguaí, assistentes ribeirinhos de novela de espaçados capítulos. Ver e não contar. Ver e guardar para conversas íntimas:
— Ontem, na tintura da madrugada, passaram três garrafinhas. Eu vi, chamei a Teresa pra espiar também...
Garrafinhas chamam-se eles, os trucidados com chumbo aos pés, e não mais como ficou escrito em livros de cartório. O garrafinha nº 1 não é diferente do garrafinha nº 2 ou 3. Foram todos nivelados pelo Guandu. Como frascos vazios, de pequeno porte e nenhuma importância, lá vão rio abaixo, Nova Iguaçu abaixo, rumo do esquecimento das garrafas e dos crimes que cometeram ou não cometeram, ou dos crimes que neles foram cometidos.
[...]
O Guandu não responde a inquéritos nem a repórteres. Não distingue, carrega. Não comenta, não julga, não reclama se lhe corrompem as águas; transporta. Em sua impessoalidade serve a desígnios vários, favorece a vida que quer se desembaraçar da morte, facilita a morte que quer se libertar da vida. Pela justiça sumária, pelo absurdo, pelo desespero.
Mas não é ao Guandu que cabe dedicar uma elegia, é aos mortos do Guandu, nos quais ninguém pensa no dia de pensar os e nos mortos. Os criminosos, os não criminosos, os que se destruíram, os que resvalaram. Mortos sem sepultura e sem lembrança. Trágicos e apagados deslizantes na correnteza. Passageiros do Guandu, apenas e afinal.
(Carlos Drummond de Andrade. Os dias lindos, 2013.)
Pode-se apontar na crônica um teor, sobretudo,
a) |
metalinguístico. |
b) |
paródico. |
c) |
crítico. |
d) |
satírico. |
e) |
fantástico. |
a) Incorreta. De fato, a crônica apresenta um caráter metalinguístico, visto que o autor dialoga com os leitores e faz referência ao texto; entretanto, é necessário considerar que o enunciado, ao empregar o termo “sobretudo”, não exclui que a crônica possa ter mais de um aspecto, cabendo ao candidato, apontar qual o elemento que se sobressai no texto em questão. Tendo isso em vista, o teor crítico da crônica se sobrepõe a seu caráter metalinguístico.
b) Incorreta. Não é possível apontar um caráter paródico no texto, visto que a crônica não pretende fazer uma releitura ou recriação de caráter cômico ou satírico de alguma outra obra literária. O texto pretende denunciar a ocorrência de eventos estranhos no rio Guandu, em cujas águas é comum encontrar cadáveres boiando.
c) Correta. O caráter crítico da crônica de Drummond fica evidente já na sua temática: no dia 02 de novembro, data em que se celebram os familiares mortos, o autor pretende abordar um assunto bastante incômodo: o aparecimento de cadáveres que surgem boiando pelo rio Gandu. O teor da crônica indica que tais episódios são recorrentes e até corriqueiros a ponto de serem banalizados, visto que a população ribeirinha chama esses mortos anônimos de “garrafinhas”. Essa inusitada designação refere-se ao fato de que esses corpos apresentam pedras amarradas aos pés, o que os faz descer o rio em posição vertical. Para além do desrespeito e da banalização, Drummond faz uma série de conjecturas, sugerindo que muitos desses mortos foram vítimas de execuções e assassinatos. O fato de muitos aparecerem boiando em grupos atados por cordas reforçam essa hipótese. Outros, porém, que aparecem sem cordas ou pesos, podem ter sido vítimas de acidentes ou suicídio. O viés crítico do texto pode ser verificado também na menção que o autor faz do sentimento de ameaça e medo vivido pelos pescadores e pela população que eventualmente encontra esses corpos. A denúncia à polícia pode vir a complicar sua situação, razão pela qual muitos preferem manter o silêncio. Por fim, pode-se mencionar que o caráter crítico do texto se sobressai justamente pelo absurdo da situação denunciada por Drummond: o aparecimento de cadáveres boiando no rio Guandu parece ter-se tornado recorrente, entretanto, as causas dessas mortes tendem a permanecer um mistério, visto que o rio “não responde a inquéritos nem a repórteres”. Tal silêncio evidencia a inação das autoridades que, ao omitirem-se, permitem que essa situação inaceitável continue a ocorrer.
d) Incorreta. O autor não pretende fazer uma sátira da situação incomum verificada no rio Guandu, não havendo o interesse de, justamente na celebração de Finados, despertar o riso do leitor diante de assunto tão mórbido. A crônica faz uma série de questionamentos que visam tentar provocar a reflexão (e a indignação) dos leitores frente ao estranho fenômeno dos mortos boiando no rio.
e) Incorreta. Por mais inusitados que possam ser, os acontecimentos narrados na crônica sobre o aparecimento de corpos boiando no rio Guandu são reais, e não fantásticos, e o narrador compartilha com o leitor seu espanto e estranheza frente a essa situação.