I.
Suave mari magno*
Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.
Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.
Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso,
Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe desse gozo
Ver padecer.
Machado de Assis. Ocidentais.
*Expressão latina, retirada de Lucrécio (Da natureza das coisas), a qual aparece no seguinte trecho: Suave, mari magno, turbantibus aequora ventis/ E terra magnum alterius spectare laborem. (“É agradável, enquanto no mar revoltoso os ventos levantam as águas, observar da terra os grandes esforços de um outro.”).
II.
Tão certo é que a paisagem depende do ponto de vista, e que o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão.
Machado de Assis. Quincas Borba, cap. XVIII.
III.
Sofia soltou um grito de horror e acordou. Tinha ao pé do leito o marido:
— Que foi? perguntou ele.
— Ah! respirou Sofia. Gritei, não gritei?
(...)
— Sonhei que estavam matando você.
Palha ficou enternecido. Havê-la feito padecer por ele, ainda que em sonhos, encheu-o de piedade, mas de uma piedade gostosa, um sentimento particular, íntimo, profundo, — que o faria desejar outros pesadelos, para que o assassinassem aos olhos dela, e para que ela gritasse angustiada, convulsa, cheia de dor e de pavor.
Machado de Assis. Quincas Borba, cap. CLXI.
A analogia consiste em um recurso de expressão comumente utilizado para ilustrar um raciocínio por meio da semelhança que se observa entre dois fatos ou ideias. No texto II, a analogia construída a partir da imagem do chicote pretende sugerir que
a) |
o instrumento do castigo nem sempre cai em mãos justas. |
b) |
o apreço aos objetos independe do uso que se faz deles. |
c) |
o cabo é metáfora de mérito, e a ponta, metáfora de culpa. |
d) |
o mais fraco, por ser compassivo, é incapaz de desfrutar do poder. |
e) |
o prazer verdadeiro se experimenta no lado dos dominantes. |
a) Incorreta. A analogia do chicote remete às relações de poder e não sugere a possibilidade de haver justiça na aplicação do castigo.
b) Incorreta. A referência ao cabo do chicote remete necessariamente ao uso que se faz desse instrumento (açoitar, castigar, punir); logo, não é possível observá-lo de modo independente de sua finalidade.
c) Incorreta. Considerando o contexto escravista retratado pelo romance “Quincas Borba”, não é possível considerar que aqueles que detém o cabo do chicote ocupem essa posição devido ao mérito, nem tampouco que os que sofrem os castigos na ponta sejam culpados. São as condições sociais e históricas injustas que determinam a posição que os sujeitos ocupam nessa relação de poder simbolizada pelo chicote.
d) Incorreta. Considerando o contexto do romance, verifica-se que são as condições históricas e sociais que determinam os lugares de sujeição e dominação, e não alguma característica de personalidade do dominado, como ser compassivo, por exemplo.
e) Correta. No romance, a imagem do chicote não é gratuita, pois remete à escravidão, mais especificamente aos castigos físicos impostos aos escravizados no contexto histórico brasileiro do Segundo Reinado, cenário da narrativa. Nesse sentido, esse objeto simboliza as relações de poder e a dominação que estão instauradas nessa sociedade e, ao empregá-lo em sua analogia, Quincas Borba explicita que somente aqueles que seguram o cabo do chicote, ou seja, somente os que detêm o poder é que serão capazes de apreciar esse sistema desigual e injusto.