Chega um momento em que a tensão eu/mundo se exprime mediante uma perspectiva crítica, imanente à escrita, o que torna o romance não mais uma variante literária da rotina social, mas o seu avesso; logo, o oposto do discurso ideológico do homem médio. O romancista “imitaria” a vida, sim, mas qual vida? Aquela cujo sentido dramático escapa a homens e mulheres entorpecidos ou automatizados por seus hábitos cotidianos. A vida como objeto de busca e construção, e não a vida como encadeamento de tempos vazios e inertes. Caso essa pobre vidamorte deva ser tematizada, ela aparecerá como tal, degradada, sem a aura positiva com que as palavras “realismo” e “realidade” são usadas nos discursos que fazem a apologia conformista da “vida como ela é”... A escrita da resistência, a narrativa atravessada pela tensão crítica, mostra, sem retórica nem alarde ideológico, que essa “vida como ela é” é, quase sempre, o ramerrão de um mecanismo alienante, precisamente o contrário da vida plena e digna de ser vivida. É nesse sentido que se pode dizer que a narrativa descobre a vida verdadeira, e que esta abraça e transcende a vida real. A literatura, com ser ficção, resiste à mentira. É nesse horizonte que o espaço da literatura, considerado em geral como lugar da fantasia, pode ser o lugar da verdade mais exigente.
Alfredo Bosi. “Narrativa e resistência”. Adaptado.
O conceito de resistência, expresso pela tensão do indivíduo perante o mundo, adquire perspectiva crítica na escrita do romance quando o autor
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rompe a superfície enganosa da realidade. |
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forja um realismo rente à vida mesquinha. |
c) |
é neutro ao figurar a vacuidade do presente. |
d) |
conserva o discurso positivo da ordem. |
e) |
consegue sobrepor a fantasia à verdade. |
a) Correta. Para Bosi, a “escrita da resistência” é responsável por evidenciar um conceito de vida em que “realidade” e “realismo” não se referem a uma “vida plena e digna de ser vivida”, o que é recorrente nas narrativas, mas sim mostrar a “vida verdadeira”, que é “quase sempre” deturpada por um repetitivo mecanismo alienante.
b) Incorreta. A criticidade do conceito de resistência está justamente em desconstruir um conceito equivocado atribuído à realidade da vida, e não por construir um.
c) Incorreta. A crítica é elaborada a partir de um posicionamento contrário do autor do texto em relação ao que se entende como realidade.
d) Incorreta. Para o autor, a tensão do indivíduo perante o mundo é o que faz a escrita ser oposta à ideia de “variante literária da rotina social” e ao “discurso ideológico do homem médio”, o que corrompe a ordem dos discursos preestabelecidos.
e) Incorreta. O autor afirma que a “narrativa atravessada pela tensão crítica” tem como consequência o “descobrimento da verdade” e, por essa razão, a literatura, apesar de normalmente ser associada à fantasia, poderia “ser o lugar da verdade mais exigente”.