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Questão 9 Enem 2021 - dia 1 - Linguagens e Ciências Humanas

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Questão 9

Machado de Assis

Singular ocorrência


    - Há ocorrências bem singulares. Está vendo aquela dama que vai entrando na igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar uma esmola.

    - De preto?

    - Justamente; lá vai entrando; entrou .

    - Não ponha mais na ca rta. Esse olhar está dizendo que a dama é uma recordação de outro tempo , e não há de ser muito tempo, a julgar pelo corpo: é moça de truz.

    - Deve ter quarenta e seis anos.

    - Ah! conservada. Vamos lá ; deixe de olhar para o chão e conte- me tudo. Está viúva, naturalmente.

    - Não.

    - Bem ; o marido ainda vive. É velho?

    - Não é casada.

    - Solteira?

    - Assim , assim . Deve chamar-se hoje D. Maria de tal. Em 1860 florescia com o nome familiar de Marocas. Não era costureira, nem proprietária , nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e chegará lá. Morava na Rua do Sacramento. Já então era esbelta, e, seguramente, mais linda do que hoje; modos sérios, linguagem limpa.

ASSIS , M. Machado de Assis: seus 30 melhores contos. Ria de Janeino: Aguilar, 1961.

No diálogo, descortinam-se aspectos da condição da mulher em meados do século XIX. O ponto de vista dos  personagens manifesta conceitos segundo os quais a  mulher



a)

encontra um modo de dignificar-se na prática da caridade.

b)

preserva a aparência jovem conforme seu estilo de  vida.

c)

condiciona seu bem-estar à estabilidade do  casamento.

d)

tem sua identidade e seu lugar referendados pelo  homem.

e)

renuncia à sua participação no mercado de trabalho.

Resolução

a) Incorreta. Embora, logo no início do texto, a personagem feminina, antes de entrar na igreja, pare por um momento para dar uma esmola, trata-se de um gesto pontual que não será retomado ao longo do diálogo. Desse modo, a prática da caridade como meio de alcançar dignidade não é tema de discussão entre os interlocutores.

b) Incorreta. De fato, o diálogo menciona a aparência jovem, "preservada", da mulher que é alvo dos comentários entre os interlocutores. No entanto, essa constatação não é relacionada, no excerto, a um determinado estilo de vida.

c) Incorreta. Ao longo do diálogo, um dos interlocutores indaga a respeito do estado civil da mulher, obtendo uma resposta um tanto vaga: ela não é viúva, nem casada, e o rótulo de "solteira" também não seria totalmente preciso ("- Solteira? - Assim, assim."). Dessa forma, o bem-estar da personagem não é relacionado a um casamento estável.  

d) Correta. O diálogo apresenta vários elementos que corroboram a ideia de que a identidade e o lugar da mulher, na época em questão, eram referendados pelo homem: sua aparência física - estar conservada, ser uma "moça de truz (de primeira ordem)", ter sido "esbelta, e seguramente mais linda do que hoje" - e seu comportamento - de "modos sérios, linguagem limpa" seguem padrões estabelecidos e valorizados pelos dois homens que analisam a personagem feminina. Além disso, a preocupação em identificar o estado civil da mulher revela a ideia de que sua identidade e seu lugar na sociedade estariam diretamente atrelados a sua relação com uma figura masculina. 

e) Incorreta. De acordo com o diálogo, Marocas "Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e chegará lá". Essa passagem insinua que a moça sustentava-se por meio de amantes, como uma concubina. Porém, não é possível afirmar que essa postura seja uma escolha da personagem, recusando-se voluntariamente a participar do mercado de trabalho.