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Questão 3 Unesp 2022 - 1ª fase - dia 2

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Questão 3

Macário Pressupostos e Subentendidos

Para responder às questões de 02 a 08, leia o trecho do drama Macário, de Álvares de Azevedo.

MACÁRIO (chega à janela): Ó mulher da casa! olá! ó de casa!

UMA VOZ (de fora): Senhor!

MACÁRIO: Desate a mala de meu burro e tragam-ma aqui...

A VOZ: O burro?

MACÁRIO: A mala, burro!

A VOZ: A mala com o burro?

MACÁRIO: Amarra a mala nas tuas costas e amarra o burro na cerca.

A VOZ: O senhor é o moço que chegou primeiro?

MACÁRIO: Sim. Mas vai ver o burro.

A VOZ: Um moço que parece estudante?

MACÁRIO: Sim. Mas anda com a mala.

A VOZ: Mas como hei de ir buscar a mala? Quer que vá a pé?

MACÁRIO: Esse diabo é doido! Vai a pé, ou monta numa vassoura como tua mãe!

A VOZ: Descanse, moço. O burro há de aparecer. Quando madrugar iremos procurar.

OUTRA VOZ: Havia de ir pelo caminho do Nhô Quito. Eu conheço o burro...

MACÁRIO: E minha mala?

A VOZ: Não vê? Está chovendo a potes!...

MACÁRIO (fecha a janela): Malditos! (atira com uma cadeira no chão)

O DESCONHECIDO: Que tendes, companheiro?

MACÁRIO: Não vedes? O burro fugiu...

O DESCONHECIDO: Não será quebrando cadeiras que o chamareis...

MACÁRIO: Porém a raiva... [...]

O DESCONHECIDO: A mala não pareceu-me muito cheia. Senti alguma coisa sacolejar dentro. Alguma garrafa de vinho?

MACÁRIO: Não! não! mil vezes não! Não concebeis, uma perda imensa, irreparável... era o meu cachimbo...

O DESCONHECIDO: Fumais?

MACÁRIO: Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem vinho, a noite sem mulher – não me pergunteis se fumo!

O DESCONHECIDO (dá-lhe um cachimbo): Eis aí um cachimbo primoroso. [...]

MACÁRIO: E vós?

O DESCONHECIDO: Não vos importeis comigo. (tira outro cachimbo e fuma)

MACÁRIO: Sois um perfeito companheiro de viagem. Vosso nome?

O DESCONHECIDO: Perguntei-vos o vosso?

MACÁRIO: O caso é que é preciso que eu pergunte primeiro. Pois eu sou um estudante. Vadio ou estudioso, talentoso ou estúpido, pouco importa. Duas palavras só: amo o fumo e odeio o Direito Romano. Amo as mulheres e odeio o romantismo.

O DESCONHECIDO: Tocai! Sois um digno rapaz. (apertam a mão)

MACÁRIO: Gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo que do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhos, ao luar sonolento, às noites límpidas, acho isso sumamente insípido. Os passarinhos sabem só uma cantiga. O luar é sempre o mesmo. Esse mundo é monótono a fazer morrer de sono.

O DESCONHECIDO: E a poesia?

MACÁRIO: Enquanto era a moeda de ouro que corria só pela mão do rico, ia muito bem. Hoje trocou-se em moeda de cobre; não há mendigo, nem caixeiro de taverna que não tenha esse vintém azinhavrado¹. Entendeis-me?

O DESCONHECIDO: Entendo. A poesia, de popular tornou-se vulgar e comum. Antigamente faziam-na para o povo; hoje o povo fá-la... para ninguém...

(Álvares de Azevedo. Macário/Noite na taverna, 2002.)

1azinhavrado: coberto de azinhavre (camada de cor verde que se forma na superfície dos objetos de cobre ou latão, resultante da corrosão destes quando expostos ao ar úmido)


“O DESCONHECIDO: Fumais?

MACÁRIO: Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem vinho, a noite sem mulher – não me pergunteis se fumo!”

À pergunta do Desconhecido, Macário



a)

responde afirmativamente, e sua resposta carrega um tom espirituoso.

b)

acaba por não responder, já que devolve a pergunta com um insulto.

c)

evita dar uma resposta clara, em uma evidente tentativa de confundir seu interlocutor.

d)

responde negativamente, e sua resposta carrega um tom espirituoso.

e)

acaba por não responder, já que devolve a pergunta com outra pergunta.

Resolução

a) Correta. Nota-se, pela resposta de Macário, que a personagem considera óbvia a interpelação feita pelo desconhecido, uma vez que ele havia acabado de expressar grande desapontamento pela perda de seu cachimbo ("Não! não! mil vezes não! Não concebeis, uma perda imensa, irreparável... era o meu cachimbo..."); logo, seria fácil presumir que Macário fumasse e, por isso, a pergunta era totalmente desnecessária. Em sua fala, de modo espirituoso e irônico, sugere uma série de outras possíveis perguntas óbvias ("de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem vinho, a noite sem mulher") que podem ser tomadas como uma resposta afirmativa à pergunta de seu interlocutor.

b) Incorreta. Não é correto afirmar que Macário não responde à pergunta feita pelo desconhecido; sua resposta, ao elencar situações em que algo perde a função pela ausência de um elemento fundamental ("o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem vinho, a noite sem mulher"), dá a entender que o cachimbo é essencial para ele e, portanto, que Macário é fumante. Também não se pode considerar sua fala propriamente um insulto, mas uma observação irônica em relação à pergunta feita por seu interlocutor.

c) Incorreta. Macário não tenta confundir seu interlocutor, mas demonstrar o quão óbvia havia sido sua pergunta. Apesar de não dizer objetivamente que fuma, tal informação é facilmente perceptível no discurso da personagem.

d) Incorreta. Macário não responde negativamente; sua fala dá a entender que a personagem é fumante, uma vez que o cachimbo seria tão fundamental para ele quanto a tinta para um tinteiro, ou as cordas para uma viola.

e) Incorreta. Macário não faz perguntas de volta ao seu interlocutor, mas sugere outras perguntas, de natureza semelhante, que o "desconhecido" poderia ter feito. Por meio dessas sugestões, demonstra ser fumante; ou seja, acaba por responder afirmativamente à interpelação feita.