Para responder às questões de 16 a 19, leia o trecho inicial da crônica “Está aberta a sessão do júri”, de Graciliano Ramos, publicada originalmente em 1943.
O Dr. França, Juiz de Direito numa cidadezinha sertaneja, andava em meio século, tinha gravidade imensa, verbo escasso, bigodes, colarinhos, sapatos e ideias de pontas muito finas. Vestia-se ordinariamente de preto, exigia que todos na justiça procedessem da mesma forma – e chegou a mandar retirar-se do Tribunal um jurado inconveniente, de roupa clara, ordenar-lhe que voltasse razoável e fúnebre, para não prejudicar a decência do veredicto.
Não via, não sorria. Quando parava numa esquina, as cavaqueiras dos vadios gelavam. Ao afastar-se, mexia as pernas matematicamente, os passos mediam setenta centímetros, exatos, apesar de barrocas¹ e degraus. A espinha não se curvava, embora descesse ladeiras, as mãos e os braços executavam os movimentos indispensáveis, as duas rugas horizontais da testa não se aprofundavam nem se desfaziam.
Na sua biblioteca digna e sábia, volumes bojudos, tratados majestosos, severos na encadernação negra semelhante à do proprietário, empertigavam-se – e nenhum ousava deitar-se, inclinar-se, quebrar o alinhamento rigoroso.
Dr. França levantava-se às sete horas e recolhia-se à meia-noite, fizesse frio ou calor, almoçava ao meio-dia e jantava às cinco, ouvia missa aos domingos, comungava de seis em seis meses, pagava o aluguel da casa no dia 30 ou no dia 31, entendia-se com a mulher, parcimonioso, na linguagem usada nas sentenças, linguagem arrevesada e arcaica das ordenações. Nunca julgou oportuno modificar esses hábitos salutares.
Não amou nem odiou. Contudo exaltou a virtude, emanação das existências calmas, e condenou o crime, infeliz consequência da paixão. Se atentássemos nas palavras emitidas por via oral, poderíamos afirmar que o Dr. França não pensava. Vistos os autos, etc., perceberíamos entretanto que ele pensava com alguma frequência. Apenas o pensamento de Dr. França não seguia a marcha dos pensamentos comuns. Operava, se não nos enganamos, deste modo: “considerando isto, considerando isso, considerando aquilo, considerando ainda mais isto, considerando porém aquilo, concluo.” Tudo se formulava em obediência às regras – e era impossível qualquer desvio.
Dr. França possuía um espírito, sem dúvida, espírito redigido com circunlóquios, dividido em capítulos, títulos, artigos e parágrafos. E o que se distanciava desses parágrafos, artigos, títulos e capítulos não o comovia, porque Dr. França está livre dos tormentos da imaginação.
(Graciliano Ramos. Viventes das Alagoas, 1976.)
1 barroca: monte de terra ou de barro.
Na crônica, o Dr. França é caracterizado como
a) |
irônico e arrogante. |
b) |
arrogante e dissimulado. |
c) |
introvertido e sarcástico. |
d) |
pedante e displicente. |
e) |
taciturno e metódico. |
a) Incorreta. A arrogância no comportamento de Dr. França pode ser observada na situação descrita pelo autor, em que o juiz exigia que todos se vestissem como ele e chegou a ordenar que um jurado trocasse as roupas claras que vestia. Porém, a ironia não condiz o comportamento de alguém que formulava seu discurso de modo regrado, sem qualquer possibilidade de “desvios”.
b) Incorreta. Dr. França exaltava a virtude e condenava crimes, o que contraria a afirmação sobre a dissimulação, apesar de demonstrar arrogância em suas exigências no Tribunal, como quando determinou que um jurado se vestisse como ele.
c) Incorreta. A sisudez, a rotina sem modificação e o “verbo escasso” (alguém que fala pouco) indica um comportamento introvertido do juiz. Contudo, o sarcasmo opõe-se à seriedade atribuída a Dr. França no início do texto em “tinha gravidade imensa, verbo escasso”.
d) Incorreta. A displicência não fazia parte do cotidiano de Dr. França, que exigia “razoabilidade no vestir” daqueles que estavam no Tribunal, assim como a pedância, já que pouco se expressava, o que levou o autor a afirmar que “Dr. França não pensava”.
e) Correta. O fato de falar pouco e o tipo de vestimenta que costumava utilizar (roupas pretas) caracterizam o comportamento taciturno de Dr. França. Já seu caráter sistemático é descrito no quarto parágrafo, como o horário que acordava, que dormia e o modo como tratava sua mulher.