Logo UNICAMP

Questão 2 Unicamp 2022 - 1ª fase

Carregar prova completa Compartilhe essa resolução

Questão 2

O Marinheiro

Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as diga, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente...

(Fernando Pessoa, O marinheiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2020, p. 51.)

O que eu era outrora já não se lembra de quem sou... Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me... Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água... Tinham um sorriso só deles, independentes do meu...

(Idem, p. 52.)

Nos excertos acima, dois fenômenos são apresentados ao leitor e constituem o principal problema dramático da peça de Fernando Pessoa. Assinale a alternativa que identifica e explica corretamente esses fenômenos.

 



a)

As palavras e as imagens tornam-se independentes da pessoa humana. Isso significa a cisão entre o sujeito e o mundo ou, ainda, a crise de identidade pessoal reiterada nos diálogos.

 

 

b)

Proferir um discurso e ver-se refletido em um lago são situações dramáticas que sugerem a unidade entre ser e existir. A questão central, quem eu sou, é resolvida no desfecho da peça.

 

 

c)

Lembrar e esquecer são dois aspectos inseparáveis da estrutura dramática da peça. Se a imagem refletida no lago não se assemelha à pessoa que a contempla, as palavras, por sua vez, garantem a conexão entre o eu e a realidade exterior.

 

 

d)

O horror e o mistério das coisas são elementos básicos desse drama. Eles produzem, nas personagens, a convicção de que é útil narrar as experiências do passado porque assim se revela o seu verdadeiro significado.

 

Resolução

Os dois excertos de Fernando Pessoa apresentam como principal temática a relação das existências: do sujeito enquanto ser enunciativo e que se faz existir na linguagem; e desta, focalizada como um evento inapreensível e que se coloca como transitório e fugaz. Nesse sentido, quando se enuncia algo, este enunciar propicia a materialização das existências do sujeito, porém, no momento da enunciação, em sua materialização, aqueles signos linguísticos, antes pertencentes ao enunciador, agora deixam de sê-lo e fragmentam a existência do ser em enunciações já passadas. Por tal razão, é possível falar-se de vários ‘eus’. O ‘eu’ construído das enunciações do passado, o ‘eu’ construído das enunciações que estão na ‘garganta’, o ‘eu’ que observa esses outros ‘eus’ “independentes”.

As relações entre as constituições dos sujeitos e os limites que os definem para dentro ou para fora de si, para dentro ou para fora da linguagem ou da narrativa constituem um dos principais temas da peça de Fernando Pessoa. Nos diálogos, as veladoras confrontam-se com a constituição de quem são, das histórias que contam e da própria figura velada, ultrapassando os limites e propiciando reflexões sobre a constituição do ‘eu’.

a) Correta. A enunciação das palavras torna-as não mais inerentes àquele que as produz, o que as faz possuir existência própria, como afirmado pela terceira veladora “As minhas palavras presentes, mal eu as diga, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais…” e em “... as minhas palavras parecem-me gente”. De mesmo modo, o sujeito e o mundo também se colocam como cindidos, dado que o sujeito se constrói e se relaciona com o mundo pela linguagem e, portanto, ao ‘perdê-la’, ao não controlá-la completamente, perde-se nas multiplicidades criadas, resultando em uma crise de identidade, como nota novamente a terceira veladora em “o que eu era outrora já não se lembra de quem sou”.

b) Incorreta. A reflexão do lago apresenta justamente a forma como o eu se coloca como outrem, como aquele que se observa fora do ‘eu’, pois é possível ‘fitar-me’, fitar o outro que sou eu, mas que ali refletido, com dentes com um sorriso que não pertence ao ‘eu’ originário, mas “independentes”, de um outro. Além disso, a questão central ‘quem sou eu’ não se resolve ao final da peça.

c) Incorreta. Embora a lembrança e o esquecimento realmente se coloquem como aspectos importantes na peça, as palavras não se apresentam como a garantia de conexão. Ao contrário, por seu valor representativo, elas também provocam as várias cisões do eu com o contexto exterior, elas proporcionam as exposições de um ‘eu’ de um momento que se confronta com o ‘eu’ de um momento seguinte, provocando não conexão, mas cisão.

d) Incorreta. Há o horror e mistério, quando as personagens se questionam se poderiam ser elas as personagens na narrativa do marinheiro. A narrativa, para as personagens do drama, se coloca, a princípio, como um elemento para que elas passem o tempo em que velam, para que compartilhem experiências, mas não para que compreendam o verdadeiro significado do passado. Ao contrário, questionam-se se o passado foi realmente vivido. Quanto mais narram o passado, mais notam que há uma ampliação desse passado, que, perdendo suas nuances de certeza, vai se tornando mais objeto de sonho do que de realidade ou de verdadeiro significado.