Na ribeira do Eufrates assentado,
Discorrendo me achei pela memória
Aquele breve bem, aquela glória,
Que em ti, doce Sião, tinha passado.
Da causa de meus males perguntado
Me foi: Como não cantas a história
De teu passado bem e da vitória
Que sempre de teu mal hás alcançado?
Não sabes, que a quem canta se lhe esquece
O mal, inda que grave e rigoroso?
Canta, pois, e não chores dessa sorte.
Respondi com suspiros: Quando cresce
A muita saudade, o piedoso
Remédio é não cantar senão a morte.
(Luís de Camões, 20 sonetos. Org. Sheila Hue. Campinas: Editora da Unicamp, 2018, p.113).
Considerando as características formais e o núcleo temático, é correto afirmar que o poema retoma o dito popular
a) |
“longe dos olhos, perto do coração”.
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b) |
“mais vale cantar mal que chorar bem”.
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c) |
“a cada canto seu Espírito Santo”.
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d) |
“quem canta seus males espanta”.
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No soneto camoniano, o eu lírico apresenta-nos uma cena em que se encontra próximo ao Eufrates relembrando os tempos passados em Sião. Nesse momento em que está rememorando tempos tão aprazíveis, é questionado por alguém a respeito do motivo de seus males e do motivo pelo qual não se propunha a cantar (a compor sobre) a história desse tão vistoso passado e do fato de sempre ter alcançado a vitória sobre tal mal. Afinal, aponta-lhe seu interpelador, quem canta pode se esquecer do mal mesmo que este seja “grave e rigoroso”, usando um conhecido ditado “Não sabes, que a quem canta se lhe esquece o mal”. Por fim, solicita-lhe que cante e que não chore por aquela sorte. O eu lírico, ainda tomado pela tristeza saudosa, responde que, dada a saudade, o remédio que é cantar (compor) apenas caberia se a canção fosse triste, se fosse sobre a morte, sobre seu próprio fim, mostrando-se resistente ao conselho do interpelador e à crença de que realmente o canto/a poesia pudesse dispor de tal poder curativo. Assim, ele consegue elevar hiperbolicamente o tamanho das saudades e do amor a Sião, à pátria, metaforicamente Portugal.
Dada a leitura acima exposta, cabe observar que o enunciado da questão solicitava que fossem consideradas características formais e o núcleo temático do soneto, associando-o a um dos ditos populares presentes nos itens.
a) Incorreta. Podemos afirmar que o núcleo temático do soneto esteja retomando este ditado, em razão de Sião estar longe dos olhos, mas perto do coração, na memória do eu lírico, portanto, acompanhando-o e sendo motivo de sua sorte e de seus males. Contudo, não há elementos formais do ditado que sejam retomados pelo poema.
b) Incorreta. Os temas do canto e do choro, do lamento são retomados pelo poema, porém não em modo, por advérbios relacionados ‘bem’ ou ‘mal’. Além disso, não há elementos formais do ditado e sua organização frasal que sejam retomados pelo poema.
c) Incorreta. O tema das particularidades, dos modos de se ver e tratar algum elemento pode ser retomado pelo poema, dado que o eu lírico cultiva seus males na rememoração discorrida dos eventos felizes, mas é instado pelo interpelador a agir de modo diferente e cantar as dores para se alegrar. Contudo, do ponto de vista estrutural, não há elementos que são retomados pelo poema.
d) Correta. A ideia de que o canto é utilizado como ferramenta para espantar os males é retomada pelo poema quando o interpelador pede ao eu lírico que este cante para que consiga afastar os males e a sorte. Ele o faz retomando exatamente uma outra versão do dito “Não sabes, que a quem canta se lhe esquece o mal”. Ao utilizar essa estrutura tão semelhante, o poema retoma não apenas a temática, mas também a forma, uma vez que faz referência direta ao ditado, construindo um paralelismo estrutural que permite a identificação de um texto pelo outro, uma vez que utiliza as mesmas sequências estruturais iniciais “quem canta”, além do aparecimento do termo “mal”, vinculado a “males”.