A sociedade é uma benção, mas o governo, mesmo em seu melhor estado, é apenas um mal necessário. No seu pior estado, é um mal intolerável, pois quando sofremos ou ficamos expostos, por causa de um governo, às mesmas desgraças que poderíamos esperar em um país sem governo, nossa calamidade pesa ainda mais ao considerarmos que somos nós que fornecemos os meios pelos quais sofremos. Há algo de muito ridículo na composição da monarquia; primeiro ela exclui um homem dos meios de informação, mas lhe permite agir em casos que requerem capacidade superior de julgamento. A posição de um rei o aparta do mundo; no entanto, a atividade de um rei exige que ele conheça perfeitamente o mundo. Com isso, as diferentes partes, opondo-se de forma antinatural e destruindo uma à outra, provam que essa figura é absurda e inútil.
(Adaptado de Thomas Paine, Senso comum e os direitos do homem. L&PM Pocket. Edição do Kindle – posição 32 a 138.)
O trecho acima foi retirado do panfleto O Senso comum e Os direitos do homem, publicado de forma anônima, em 1776. Com autoria assumida por Thomas Paine, a obra causou grande reação pública. A partir do texto e das informações fornecidas, é correto dizer que o autor
a) |
apresenta a Monarquia como um mal necessário e a figura do rei absolutista como absurda e inútil, contudo inquestionável. Paine tornou-se o principal nome contrário à Revolução Americana. |
b) |
estabelece uma relação direta entre a sociedade e o governo, abrindo espaço para debates acerca do mau governo. O panfleto escrito por Paine tornou-se uma base teórica para a Revolução Americana. |
c) |
demonstra como regimes autoritários favorecem os meios de informação, para que os homens exerçam suas capacidades de julgamento. Paine usou jornais para combater a Revolução Americana. |
d) |
considera que sociedades com e sem governos têm os mesmos benefícios, desenvolvendo-se de formas semelhantes. Paine desencorajou o engajamento dos colonos ingleses na Revolução Americana. |
A questão aborda a participação de Thomas Paine no processo de independência das treze colônias da América do Norte, região colonizada pela Inglaterra e que originaria o país conhecido como Estados Unidos da América, após o processo de emancipação, que pode ser chamado de Revolução Americana. A atuação política e a circulação das ideias de Paine foi fundamental para embasar uma série de reivindicações e propostas dos colonos diante de sua metróple, bem como visões sobre as diversas formas de governo.
Nascido na Inglaterra, Thomas Paine (1737-1809) veio à América em busca de novas oportunidades de atuação e negócios, e engajou-se fortemente na luta pela independência, tanto de maneira direta, tendo lutado na guerra pela emancipação, quanto produzindo material escrito que sistematizasse as discussões políticas do período. Sua obra mais famosa, o planfleto Common Sense (Senso Comum), foi publicado no início de 1776 - o mesmo ano da Declaração de Independência - e faz uma análise direta das formas de governo, sendo extremamente crítico à monarquia e suas instituições, mas também ressaltando que o Estado é um mal necessário, ideias que levam a conclusões sobre a soberania popular e sobre uma possibilidade de governo democrático. Para Paine, qualquer governo retiraria do povo a possibilidade de participação mais intensa e direta, porém, em diversas circunstâncias, o governo seria necessário, ou seja, seria um mal tolerado. Porém, a monarquia lhe parecia uma forma de governo inadequada, principalmente no contexto americano, ou seja, seria um mal intolerável.
O trecho da obra de Paine que serve como texto-base da questão destaca sua crítica da monarquia: o pensador acredita ser algo contrário ao senso-comum uma ilha do outro lado do Atlântico governar um território extenso e diverso como o das colônias; o fato de um governo hereditário e baseado em privilégios controlar colonos que possuem anseios distintos também lhe parece um contrassenso.
Essas ideias continuam a ser desenvolvidas ao longo do restante da vida de Paine, que também discutiu a Revolução Francesa - tendo ido à Paris durante o processo - e assuntos como a questão agrária e as possibilidades de ampliação de direitos, autonomia de governo e justiça social.
a) Incorreta. Thomas Paine identifica na monarquia uma das piores formas de governo, não sendo, portanto, um mal necessário, mas sim um mal que não deveria ser tolerado. A figura do rei aparece como absurda e inútil, e exatamente por isso, deveria ser questionada, não havendo no pensamento do autor qualquer pudor de se confrontar os soberanos absolutistas. Paine também não foi, de forma alguma, o principal nome contrário à Revolução Americana, mas um de seus grandes apoiadores.
b) Correta. O panfleto de Paine foi uma das principais bases teóricas para o processo de independência e para a formação do governo estadunidense nos anos posteiores. Uma das ideias que mais se destaca é a relação entre a sociedade e o governo. O autor faz uma grande defesa da sociedade, enquanto sempre desconfia do Estado - princípio político bastante caro aos Estados Unidos - mas fornece método para que se discutam as possibilidades da sociedade participar mais diretamente do governo, abrindo caminho para melhorá-lo. Como o próprio texto diz: "A sociedade é uma benção, mas o governo, mesmo em seu melhor estado, é apenas um mal necessário. No seu pior estado, é um mal intolerável (...)". Dessa forma, seu pensamento permite identificar, criticar e se voltar contra os maus governos, ou seja, aqueles que se afastam por demasiado dos anseios da sociedade.
c) Incorreta. O pensamento político expresso no texto e em toda a atuação intelectual e política de Thomas Paine não demonstra que regimes autoritários favorecem os meios de informação, possibilitando aos indivíduos o exercício da sua capacidade de julgamento. O que o autor defende é exatamente o contrário, ou seja, os regimes autoritários dificultariam a circulação de informações, restringindo a capacidade de julgamento do cidadão. Em contraposição a isso, o próprio Paine se utilizou largamente da imprensa e de panfletos para criticar o regime monárquico inglês, em regiões da colônia onde o controle sobre a imprensa não se manifestava de maneira incontornável.
d) Incorreta. Paine foi um grande encorajador do engajamento dos colonos ingleses na Revolução Americana. Ele mesmo era de origem inglesa e lutou contra seu país natal, acreditando que sua ação revolucionária criaria melhores condições de vida e governo nas Américas. Seu pensamento a respeito da comparação entre sociedades com e sem governos não se dá em torno dos benefícios, mas sim em torno dos malefícios, caso a sociedade tenha um governo ruim. Como o autor argumenta: "(...) pois quando sofremos ou ficamos expostos, por causa de um governo, às mesmas desgraças que poderíamos esperar em um país sem governo, nossa calamidade pesa ainda mais ao considerarmos que somos nós que fornecemos os meios pelos quais sofremos". Dessa forma, notamos que Paine afirma que as desgraças em um país com mau governo podem ser equivalentes às de um país sem governo, mas com um agravante: em caso de governo ruim, os cidadãos sofrem um peso maior, já que eles mesmos forneceram os meios para a formação desse governo. Essa última ideia é derivada da noção contratualista de autores como John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Segundo esses pensadores, o contrato social consistiria em um acordo entre os indivíduos e o soberano, que abririam mão de parte de sua liberdade e aceitariam ser governados, para que houvesse o estabelecimento de limites e de alguns direitos. No caso de governos que não cumprem os princípios do contrato, o pensamento de Locke defende a rebelião, algo que dialoga intensamente com a Revolução Americana e com Thomas Paine. Ainda na esteira da análise que Paine faz da responsabilidade da população por um governo ruim, podemos concluir também o seguinte: para o autor, não se rebelar contra um governo injusto consistiria em redobrar o peso que aquela sociedade já sente pelas ações arbitrárias do Estado, além de representar uma conivência com o sofrimento da sociedade como um todo.