É uma tarefa difícil realizar um diagnóstico do tempo presente. Definir o presente como “época”? Os marcos canônicos (geralmente de natureza política) variam, sabidamente, ao gosto das experiências nacionais. Na França, na península Ibérica e no Brasil, o marco que define o início da história contemporânea é a Revolução Francesa. Na Alemanha e na Inglaterra, o historiador que se dedica à história contemporânea trabalha preferencialmente com eventos posteriores à II Guerra Mundial. Contemporânea, na Rússia, é a história posterior a 1918. Na Itália, por sua vez, trata-se do período que advém após o Congresso de Viena (1814-1815).
(Adaptado de Helena Miranda Mollo, Sergio da Mata, Mateus Henrique de Faria Pereira e Flávia Varella, Tempo presente & usos do passado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. Posição Kindle: 107-111.)
A partir da leitura do texto, é correto afirmar que
a) |
o recorte temporal de História Contemporânea é natural e consensual entre as civilizações ocidentais e resume o que podemos definir como História do Tempo Presente. |
b) |
experiências traumáticas marcadas, por exemplo, pelas duas grandes guerras mundiais, definem nossa experiência de tempo presente e delimitam o início da História Contemporânea. |
c) |
as balizas cronológicas da História que definem as periodizações usadas pelas grandes narrativas históricas e livros escolares são de natureza política, variando de acordo com as experiências nacionais. |
d) |
os riscos de se construir narrativas múltiplas sobre a história do tempo presente tornam urgente uma revisão histórica que estabeleça balizas cronológicas universais na linearidade do tempo histórico. |
A questão parte de uma problematização a respeito do estabelecimento de períodos tradicionais para o estudo da história e da multiplicidade de caminhos possíveis para se delimitar o que se chama de História Contemporânea.
Essa forma tradicional de periodização, notadamente ocidental e eurocêntrica, costuma estabelecer faixas de tempo como Pré-História, Antiguidade, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Todas teriam seus marcos específicos. Dessa forma, a Pré-História se encerraria com a introdução da escrita; a Antiguidade com a queda do Império Romano do Ocidente em 476; a Idade Média com a tomada de Constantinopla em 1453 e a Idade Moderna com a Revolução Francesa em 1789. Esses são marcos muito caros à Europa e à história ocidental e, de acordo com essa visão, a Idade Contemporânea se iniciaria com a Revolução Francesa. Ou seja, a história dos acontecimentos mais recentes teria início em finais do século XVIII. Porém, como o texto da questão discute, esses marcos dependem de contextos específicos, o que leva a mais de um caminho interpretativo sobre determinado marco ou período histórico.
a) Incorreta. O recorte temporal para a História Contemporânea não pode ser chamado de natural, já que se trata de uma construção metodológica e ideológica realizada por estudiosos e outros atores sociais. Sendo, portanto, uma construção humana, não pertence ao universo das coisas naturais. Não se trata também de um recorte consensual entre as diversas civilizações, já que o próprio texto da questão demonstra que a noção de História Contemporânea varia de região para região e de contexto para contexto. Por exemplo: para os franceses, o marco da contemporaneidade seria a Revolução Francesa, enquanto para os russos seria o momento posterior a 1918, ou seja, o final da Primeira Guerra Mundial e o período no qual os efeitos da Revolução Russa foram sentidos. O marco se refere sempre a um momento de grandes transformações em determinada sociedade, e como as sociedades não se movimentam todas em conjunto, é impossível determinar o mesmo marco para todas.
b) Incorreta. Embora as duas guerras mundiais tenham estabelecido experiências traumáticas, não se pode estabelecer o período posterior a elas como fronteira de períodos históricos e início da Idade Contemporânea para todas as sociedades. Por mais globais que esses conflitos tenham sido, eles não afetaram por igual todas as sociedades do mundo. As duas grandes guerras podem ser relacionadas ao início da história contemporânea em países como Rússia, Inglaterra e Alemanha, mas essas experiência não pode ser generalizada.
c) Correta. O estabelecimento de recortes temporais, seja para estudos mais específicos quanto para a divulgação e o ensino da história, depende de uma série de condições, dentre as quais a natureza política, que varia de país para país. As experiências nacionais são marcadamente distintas, já que a história desses países podem diferir consideravelmente. Dessa forma, existe uma política voltada ao que lembrar e ao que esquecer, ao que destacar e ao que deixar de lado. Essas decisões políticas não partem apenas de governos, mas também da intencionalidade e dos projetos dos próprios pesquisadores e autores de historiografia. Também não são decisões monolíticas, podendo sofrer alterações de tempo para tempo, o que nos leva a refletir sobre a questão da memória histórica e sobre a necessidade de se buscar constantemente novas perspectivas historiográficas.
d) Incorreta. O estabelecimento de narrativas múltiplas pode gerar tentativas de revisionismo histórico, sendo que algumas delas podem ser socialmente prejudiciais, afetando grupos e até mesmo o conhecimento já estabelecido. Um exemplo de revisionismo danoso ao debate histórico e à sociedade como um todo é a negação em torno do Holocausto, que gera combustível para o neonazismo e para o pensamento antissemita. Outra dinâmica revisionista é a desvalorização da figura de Zumbi dos Palmares e da existência dos quilombos no Brasil colonial, feita com base em informações distorcidas e conclusões conduzidas não pela prática histórica séria, mas sim pelo claro projeto político de atacar o movimento negro no Brasil atual. Porém, a possibilidade de revisionismo não deve fazer com que se estabeleçam balizas temporais universais, já que a experiência histórica não é universal. Se diferentes experiências históricas existem, criar marcos universais seria negar a multiplicidade cultural, política e social de diferentes povos e grupos. Assim, o universalismo geraria um apagamento e uma falta de perspectiva diversificada, o que representa algo profundamente anti-histórico e gerador de distorções graves e redutoras. A negação do universalismo inclusive nos fornece ferramentas metodológicas para realizar a contraposição às narrativas únicas, evitando uma homogeneização do estudo da história e trazendo para o palco historiográfico a importância da apuração de diversas fontes e do debate pluralista.