REDAÇÃO
Texto 1:
O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais, e, para além dela, em todas as sociedades que as seguem no caminho da "modernidade". Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta económica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa.
Pierre Dardot e Christian Lavai. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, 2016.
Texto 2:
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
(...)
Carlos Drummond de Andrade, "A máquina do mundo", de Claro Enigma, 1951.
Texto 3:
Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína
Tudo é menino, menina no olho da rua
O asfalto, a ponte, o viaduto ganindo pra lua
Nada continua...
(...)
Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial
Caetano Veloso, Trecho da música Fora da Ordem, 1991.
Texto 4:
Quino, Mafalda. Assim vai o mundo!
Texto 5:
Os adultos ficam dizendo: "devemos dar esperança aos jovens". Mas eu não quero a sua esperança. Eu não quero que vocês estejam esperançosos. Eu quero que vocês estejam em pânico. Quero que vocês sintam o medo que eu sinto todos os dias. E eu quero que vocês ajam. Quero que ajam como agiriam em uma crise. Quero que vocês ajam como se a casa estivesse pegando fogo, porque está.
Greta Thunberg, Trecho de discurso em Davos, 2019.
Considerando as ideias apresentadas nos textos e também outras informações que julgar pertinentes, redija uma dissertação em prosa, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema: O mundo contemporâneo está fora da ordem?
Instruções:
■ A dissertação deve ser redigida de acordo com a norma-padrão da língua portuguesa.
■ Escreva, no mínimo, 20 linhas, com letra legível e não ultrapasse o espaço de 30 linhas da folha de redação.
■ Dê um titulo a sua redação.
A prova de redação FUVEST 2021 traz uma pergunta ao candidato, qual seja: O mundo contemporâneo está fora de ordem? Neste ano, espera-se que o texto produzido esclareça ao leitor a concepção adotada acerca da baliza “ordem”. Definido pelo dicionário Michaelis como uma “organização sistemática de vários elementos, que segue princípios predeterminados”, é relevante que o candidato elucide que princípios predeterminados estão “fora de ordem”; desajustados. Assim, a partir do conceito de ordem, é possível responder à pergunta-tema, esclarecendo argumentativamente se o mundo contemporâneo se encontra adequado a certos princípios ou não. Cabe observar que se trata de um tema com possibilidades plurais de abordagem, uma vez que, embora os excertos trazidos apontem algumas noções de “desordem”, essa concepção não é restrita. Logo, é possível construir uma noção autoral de “ordem”.
O primeiro excerto é um trecho do livro "A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”, escrito pelos filósofos franceses Pierre Dardot e Christian Laval. Nele, os autores refletem sobre certas “normas” definidas pelo neoliberalismo que, supostamente, seriam responsáveis por encaminhar as sociedades ocidentais à modernidade. Tal concepção defende que as pessoas vivam “num universo de competição generalizada”, uma vez que induz o indivíduo a entender-se e comportar-se como uma empresa. Para isso, a doutrina socioeconômica ordena as relações sociais segundo o modelo econômico, o que, em tese, justificaria profundas desigualdades como aceitáveis. Tendo por base as reflexões dos filósofos, o candidato, caso pertinente ao seu projeto de texto, pode apropriar-se dessas noções de “fora da ordem”, uma vez que, embora a opinião dos autores não seja explicitada no trecho, é possível depreender que uma “competição generalizada” e “comportar-se como uma empresa” são comportamentos que geram um mal-estar social. Em suma, de acordo com o supracitado, para ser considerado “moderno”, a sociedade precisa se submeter a dinâmicas maléficas para si própria.
O segundo excerto traz fragmento do poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond Andrade. No poema, o eu lírico rejeita a concepção de que o mundo é uma máquina, metáfora comumente relacionada ao processo de modernização das cidades. O trecho traz a visão do homem moderno para a máquina que, ao contrário de benefícios, gera perdas à sociedade. A dominação dos “recursos da terra” atinge também “as paixões e os impulsos e os tormentos”, demonstrando que um suposto desenvolvimento social vem seguido da privação de valores humanos. O eu lírico demonstra-se cético diante da representação da realidade contaminada por valores que não dialogam com os seus, o que demonstra sua inadequação. Em vista disso, é possível supor que o sujeito lírico se sente alheio à ordem contemporânea, sentimento que se relaciona ao tema proposto.
O terceiro excerto, assim como o anterior, suscita reflexões por meio de um texto poético. O trecho da canção “Fora de ordem”, de Caetano Veloso, tem relação íntima com a discussão proposta pela FUVEST. Os versos apontam para um sujeito atônito frente às rápidas mudanças sociais ao seu redor: “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”. Ao longo dos versos, somos contagiados pela sensação de não pertencimento do eu lírico, que afirma categoricamente que “Alguma coisa está fora da ordem / Fora da nova ordem mundial”. A canção, ao relacionar-se diretamente com a frase-temática da proposta, abre importantes reflexões ao candidato: de qual ordem se está tratando? Afinal, qual a “nova ordem mundial”?
O quarto excerto é composto por um cartum de Mafalda, personagem produzida pelo cartunista argentino Quino conhecida como uma menina revolucionária e contestadora. No cartum “Assim vai o mundo!”, a garota, bastante decepcionada, observa um globo terrestre repleto de ataduras, geralmente usadas para o tratamento de feridas. A partir de uma linguagem não verbal, podemos depreender que Mafalda está desapontada com a situação do mundo, que se encontra ferido e precisando de cuidados (ilustrados pelas ataduras e por um medicamento). A imagem do globo – representado como metonímia para a sociedade – aponta para uma desordem mundial, o que precisa ser remediado.
Por fim, o quinto e último excerto apresenta ao candidato o trecho de um discurso de Greta Thunberg, uma jovem ativista ambiental sueca. Nele, Greta desconstrói o senso comum de que “é preciso dar esperança aos jovens”, o que, em teoria, promoveria um mundo melhor. Segundo ela, a esperança gera um sentimento de conformismo nas pessoas (jovens ou não). No entanto, frente ao atual mundo, é preciso estar em pânico e sentir medo, pois, apenas assim, as pessoas irão agir. Categoricamente, a garota propõe: “Quero que ajam como agiriam em uma crise. Quero que vocês ajam como se a casa estivesse pegando fogo, porque está”. Por extensão, frente a um mundo “fora de ordem” – apresentado em diversos contextos nos últimos quatro textos – é preciso agir, de modo a impedir que a desordem seja naturalizada e a passividade impere. Mesmo que não seja possível identificar a que “desordem” Greta se refere, é função do candidato preencher de significado as inúmeras possibilidades de abordagem.
De forma geral, como proposto pelo próprio comando de prova, o candidato deveria responder à pergunta proposta, contextualizando a discussão na contemporaneidade. Para isso, é possível lançar mão das ideias suscitadas na coletânea e de informações externas, do seu repertório de mundo, de modo a articular todo esse conteúdo a um projeto de texto autoral, coeso e coerente.