Leia o texto e responda à questão.
Só a Rosa parecia capaz de compreender no meio do sentir, mas um sentimento sabido e um compreendido adivinhado. Porque o que Miguilim queria era assim como algum sinal do Dito morto ainda no Dito vivo, ou do Dito vivo mesmo no Dito morto. Só a Rosa foi quem uma vez disse que o Dito era uma alminha que via o Céu por de trás do morro, e que por isso estava marcado para não ficar muito tempo mais aqui. E disse que o Dito falava com cada pessoa como se ela fosse uma, diferente; mas que gostava de todas, como se todas fossem iguais. E disse que o Dito nunca tinha mudado, enquanto em vida, e por isso, se a gente tivesse um retratinho dele, podia se ver como os traços do retrato agora mudavam. Mas ela já tinha perguntado, ninguém não tinha um retratinho do Dito. E disse que o Dito parecia uma pessoinha velha, muito velha em nova.
João Guimarães Rosa, Campo Geral.
a) Sabendo que o quiasmo é uma figura de estilo formada por uma dupla antítese cujos termos se cruzam, identifique um exemplo de quiasmo no texto e explique a sua construção.
b) Nas palavras do crítico Paulo Rónai, o escritor Guimarães Rosa sonda as suas personagens "num momento de crise, quando, acuadas pelo amor, pela doença ou pela morte, procuram desesperadamente tomar consciência de si mesmas e buscam o sentido de sua vida". Como a ausência de Dito desperta a inquietação de Miguilim?
a) De acordo com o enunciado, quiasmo é uma figura de estilo formada por uma dupla antítese cujos termos se cruzam. Pode-se afirmar também que essa figura promove uma “inversão da ordem das palavras (o que poderá conduzir à repetição das mesmas) e de duas frases que se opõem, permitindo não só diversificar o ritmo frásico, bem como levar à obtenção de certos efeitos semânticos, a partir da posição que as palavras ocupam no enunciado” (E-dicionário de termos literários. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/quiasmo/).
No excerto de Campo Geral, pode-se identificar essa figura na seguinte construção: “(...) algum sinal do Dito morto ainda no Dito vivo, ou do Dito vivo mesmo no Dito morto”. O trecho em questão apresenta uma dupla antítese formada pelos pares “Dito morto” e “Dito vivo”. Miguilim, em suas reflexões, entrecruza esses termos numa segunda construção em que os pares de antíteses são invertidos “Dito vivo” e “Dito morto”. Essa inversão contribui não apenas para imprimir um ritmo à narrativa, como também mimetiza a complexidade dos pensamentos da criança, uma vez que as sequências invertidas produzem sentidos diversos de acordo com cada combinação. No primeiro caso, seria possível identificar uma tentativa de encontrar um traço da morte no menino ainda vivo, enquanto, no segundo, uma tentativa de encontrar a memória viva do menino morto.
b) Mesmo sendo mais novo que seu irmão Miguilim, Dito era considerado uma “pessoinha velha”, pois, dotado de uma sabedoria e uma perspicácia incomuns para uma criança da sua idade, conseguia compreender os mistérios do mundo adulto e explicava para Miguilim as conflituosas questões enfrentadas pela família. Nesse sentido, Dito cumpre o papel de um “ajudante mágico” junto a Miguilim, ajudando-o a entender o mundo para que pudesse enfrentá-lo com suas próprias forças. A perda do irmão significou para Miguilim o primeiro contato com a morte e a consequente consciência da finitude dos afetos e da própria existência; além disso, implicou a perda daquele amigo que o guiava pelos obscuros mistérios do mundo. Dessa forma, a ausência do irmão gera uma inquietação em Miguilim, pois, a partir dessa experiência, ele deverá elaborar a dor da perda e também se esforçar para elaborar, sozinho, as respostas para suas questões existenciais e filosóficas.