Leia o poema de Fernando Pessoa.
Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-’star que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.
Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.
Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.
Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.
Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.
(Obra poética, 1997.)
No poema, o eu lírico sente-se
a) |
desorientado e melancólico. |
b) |
desamparado e entediado. |
c) |
nostálgico e orgulhoso. |
d) |
perplexo e eufórico. |
e) |
aliviado e resignado. |
a) Correta. O eu lírico relata seu assombro e inquietação diante da morte do Alves, o dono da tabacaria pela qual ele sempre passava. A presença desse personagem era algo fixo na rotina do eu lírico, que, além de lhe dar um certo conforto em meio à vida agitada da cidade, era, segundo ele próprio, “um ponto de referência de quem sou”. Dessa forma, compreende-se a desorientação do poeta, pois a morte do Alves trouxe uma mudança em seu entorno: ele constata que “desde ontem a cidade mudou” e lamenta que está “agora sem essa monotonia”. Ele se encontra desorientado, pois, aquilo que lhe dava uma sensação de estabilidade e segurança não existe mais.
A melancolia do poeta pode ser observada em seu confronto com a morte de uma pessoa que fazia parte de sua rotina, sentimento que pode ser observado nos seguintes versos: “Meu coração tem pouca alegria,/ E isto diz que é morte aquilo onde estou”. Essa melancolia também pode ser verificada na constatação de que ao Alves “ao menos a ele alguém o via”, porém, de acordo com o poeta “se morrer, não falto, e ninguém diria:/ Desde ontem a cidade mudou”, ou seja, o dono da Tabacaria tinha uma existência fixa e era sempre notado por aqueles que passavam, por isso, sua ausência seria sentida. O poeta, por sua vez, tem uma existência cambiante de quem está sempre de passagem – “Ele era fixo, eu, o que vou” – e, por isso, ele constata que “se morrer, não falto, e ninguém diria:/ Desde ontem a cidade mudou”. Por não se fixar em nenhum lugar, o poeta não fará parte da vida de ninguém e, assim, sua ausência não será sentida.
b) Incorreta. É possível afirmar que o eu lírico experimenta um desamparo (sentimento de abandono) diante da morte de Alves, no entanto, ele não afirma estar entediado (aborrecido, cansado). Sua melancolia e desorientação devem-se ao fato de a sua rotina ter sofrido uma mudança.
c) Incorreta. Verifica-se a expressão da nostalgia (melancolia profunda) provocada pela morte de uma pessoa conhecida, mas, em nenhum momento, o eu lírico expressa o sentimento de orgulho (prazer com a própria honra).
d) Incorreta. Pode-se afirmar que a morte do dono da tabacaria trouxe perplexidade (surpresa) ao eu lírico, porém, o sentimento vivenciado é oposto à euforia (grande alegria).
e) Incorreta. A morte de Alves não trouxe alívio, mas inquietação. Também não há resignação (submissão), mas uma melancolia diante da morte.