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Questão 6 Unicamp 2021 - 2ª fase - dia 2

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Questão 6

Estudos da Cultura

A humanidade vai sendo descolada desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia, ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes. Formam uma camada de gente que fica agarrada na terra. A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo uma abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. 

(Adaptado de Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 21-22.)

O texto acima foi escrito pelo intelectual indígena Ailton Krenak. A partir da leitura do excerto e de seus conhecimentos, responda às questões.

a) Identifique uma condição econômica e outra sociocultural do tempo presente no Brasil que causaram impacto no pensamento de Krenak.

b) De acordo com o autor, de que modo a pluralidade das formas de vidas é importante para a proposição de um novo paradigma para a humanidade?



Resolução

a) As dinâmicas sociais e políticas, de nosso tempo, atreladas à lógica econômica mundial, globalizada, não nos permite, mais, olharmos para nós mesmos como seres pertencentes desse organismo chamado “terra”. Por isso mesmo, via de regra, nosso olhar para a natureza é calculista, indiferente, afastado, mercantilizado. Qualquer um dos adjetivos, em pauta, nos revela a consequência de um processo que, a rigor, começa no Mundo Moderno: a racionalidade técnica a serviço da dominação, com ares de soberba e sob a justificativa do progresso e da civilização.

Civilização que, como o texto menciona, é abstrata e, como tal, absurda. Abstrata pois, nos moldes que se dá, se descola da realidade empírica e se torna conceito vazio, como se fosse independentemente de qualquer elemento natural ou fenômeno da natureza. Absurdo, logicamente, pelo mesmo motivo: por esconder o fato de que, sem lastro real, sem proximidade com o mundo, nenhuma ideia de civilização se sustenta.

Disso, bem coloca o autor: poucos se deram conta. Destaque para aqueles que, “meio esquecidos pela borda do planeta”, conseguem se enxergar, ainda, como pertencentes à terra. Falamos daqueles que não se perderam no devaneio do progresso ou da civilização, dos que tem contato direto, contínuo e, pelo menos por enquanto, ininterrupto com a natureza.

Uma condição econômica que causou impacto no pensamento do intelectual indígena Ailton Krenak, de modo a fazê-lo ter interpretações como a descrita acima, é o avanço da agroexportação no Brasil, nos tempos de hoje. Historicamente, essa lógica de negóciofoi fundamental na economia brasileira, desde os tempos de Império, pelo menos. Atualmente, porém, os órgãos de fiscalização têm alertado: o desmatamento, em prol do agronegócio (através de incêndios clandestinos, por exemplo) cresce exponencialmente. Nas áreas desmatadas, os latifundiários, entre outras coisas, plantam grãos para abastecer o mundo, em uma lógica econômica de divisão do trabalho global que faz do Brasil  “celeiro do mundo”.

O outro lamentável aspecto desse processo pode ser observado, fatalmente, nos aspectos socioculturais dos povos ribeirinhos, indígenas, quilombolas e caiçaras: todos vão perdendo suas terras para o avanço do agronegócio. Os governos fazem pouco caso da situação e se negam, por exemplo, a cumprir os deveres constitucionais da demarcação de terra indígena ou de fiscalização de áreas de proteção ambiental. O triste resultado se nota rapidamente: as populações já mencionadas vão, forçadamente, se dissipando e perdendo, de modo abrupto, suas culturas. Línguas, danças, ritos, vestuários, alimentação, crenças: tudo se dilui, se esvai, se perde. O processo de aculturação mata o povo brasileiro, aos poucos.

b) A pluralidade das formas de vida é importante para a proposição de um novo paradigma para a humanidade, de acordo com o autor, porque propicia um olhar mais completo para a natureza e a terra, já que, negando a lógica econômica global, e seus impactos socioculturais, apresenta outra perspectiva, frente ao avanço da tecnologia e a construção de uma ideia vazia e absurda de civilização: podemos ser e estar, no planeta, como seres pertencentes a esse.

Dito de outro modo: as populações ribeirinhas, caiçaras, indígenas e quilombolas mostram que é possível vivermos em contato com a natureza como se dela fizéssemos parte, respeitando-a como a nós mesmos, em uma relação de interdependência, não de domínio. Além da integridade do meio ambiente, assim, também poderíamos preservar as tradições locais, sem a necessidade de diluirmos nossas práticas culturais nas dinâmicas padronizadas do mercado global.

Contra o abuso dos recursos naturais, então, e contra o processo de aculturação, o intelectual indígena Ailton Krenak defende o respeito para com o planeta e seus limites, além da diversidade cultural construída a partir da alteridade. Quanto mais destruímos o meio ambiente e, fatalmente, nossas culturas e tradições, mais ingressamos na lógica moderna do domínio da natureza, de sua destruição, e mais padronizamos nossas vidas, sob a égide absurda do progresso e da civilização.