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Questão 0 Unicamp 2021 - 2ª fase - dia 1 - Português, Inglês e Redação

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Redação

Discurso Diário

REDAÇÃO PROPOSTA 1

    Você é candidato/a a vereador/a em uma cidade de São Paulo. Em sua campanha, prometeu resolver uma situação polêmica envolvendo a escola pública em que estudou. A escola foi fundada em 1965 e tem em seu pátio duas estátuas de figuras históricas apresentadas como glórias passadas do Estado: um bandeirante, que hoje dá nome a uma rodovia estadual (Anhanguera), e um missionário jesuíta que fundou a cidade de São Paulo (Padre Anchieta). Tais estátuas sempre passaram despercebidas pela maioria dos estudantes. Em 2020, inspirados no movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que questionou monumentos erguidos em homenagem a colonizadores e escravagistas na Europa, Estados Unidos e África, um grupo de estudantes se mobilizou para pedir a retirada das estátuas do pátio da escola. Outros estudantes se manifestaram contra a possível retirada.

    Como ex-aluno/a e candidato/a a vereador/a, você foi convidado/a para discutir o assunto na assembleia estudantil dessa escola. Você então decide preparar um discurso político a ser proferido na assembleia. Em seu texto, você deve: a) fazer um balanço das duas visões em disputa; b) assumir uma posição sobre como agir diante do dilema da retirada ou não das estátuas, argumentando no sentido de convencer os estudantes ali presentes. Lembre-se de que, como líder político, sua posição terá impacto nos encaminhamentos da assembleia. Para escrever seu texto, leve em conta a coletânea apresentada a seguir.

 

1. Bandeirante: indivíduo que no Brasil colonial tomou parte em bandeira (no sentido de expedição); paulista (no sentido de natural ou habitante); que ou o que abre caminho; desbravador, precursor, pioneiro.

(Dicionário Houaiss on-line. Disponível emhttps://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v5-4/html/index.php#1.Acessado em 28/09/2020.)

 

2. Os vândalos do bem escolheram o alvo certo. Assim como os intelectuais de ontem, que ergueram estátuas para celebrar as ideias hegemônicas da época, os de hoje estão dispostos a derrubá-las em nome do mesmo princípio covarde. Uma estátua é uma cicatriz da história, uma marca inscrita pelo passado no corpo paisagístico da sociedade. Nas praças, nos parques ou nas ruas, as estátuas alertam-nos sobre o passado - ou melhor, sobre incontáveis camadas de passado. A derrubada desses símbolos revela o desejo tirânico de exterminar a memória social. Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente de um personagem ou de uma ideologia, mas apenas a prova material de que, um dia, em outra época, isso foi celebrado.

(Adaptado de Demétrio Magnoli, Derrubada de estátua é a imposição do esquecimento. Folha de São Paulo, 26/06/2020.)

 

3.

(Alexandre Beck. Disponível em https://tirasarmandinho.tumblr.com/post/151198042879/tirinha-original. Acessado em 28/09/2020.)

 

4.Cidades são locais de memória e temos o direito de atribuirmos novos sentidos a monumentos que outrora esculpimos em pedra. Não se apaga a história, escrita com a caneta dos vencedores. No caso de estátuas, questiona-se quem merece um pedestal público. A escolha não está entre depredar monumentos ou deixá-los intocáveis. Podemos, ao invés disso, ter a maturidade de escolher não elogiar genocidas em nosso espaço público e derrubar monumentos. Civilidade essa que é, aliás, infinitamente superior à das figuras representadas nesses monumentos. Seja para pô-los em museus, para colocá-los em cemitérios de esculturas, para ressignificá-los, quando o valor artístico permite, seja para destruí-los, quando este valor for pífio.

(Adaptado de Thiago Amparo, Borba Gato deve cair. Folha de São Paulo, 14/06/2020.)

 

5. Como todos os missionários do Brasil, Anchieta protegia os índios e benzia a escravidão dos negros. Para ele, o cativeiro dos últimos livrava os primeiros da exploração colonial. Depois, o padre Antônio Vieira completou a justificação jesuítica do tráfico negreiro, afirmando que o escravismo também salvava os africanos do paganismo. Ao fio dos anos, acumulando negócios, os jesuítas se tornaram grandes proprietários de escravos. A fazenda de Santa Cruz, que lhes pertencia, era a maior propriedade escravista das Américas por volta de 1750, concentrando mais de mil cativos negros e mulatos.

(Adaptado de Luiz Felipe Alencastro, Santo Anchieta dos poucos. Folha de São Paulo, 20/07/2014.)

 

6. Os motivos que moviam os bandeirantes eram três. Em primeiro lugar, a riqueza: comerciantes endinheirados organizavam bandeiras para descobrir novas minas e depósitos de ouro, prata e pedras como a esmeralda. Em segundo lugar, a propriedade: fazendeiros financiadores usavam as expedições para ampliar suas terras, aumentando o território para cultivo ou criação de gado. Por fim, a mão de obra: muitas viagens tinham como objetivo recapturar escravos fugitivos ou então encontrar índios que pudessem ser escravizados.

(Adaptado dehttps://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-era-uma-expedicao-dos-bandeirantes/. Acessado em 25/09/2020.)

 

REDAÇÃO PROPOSTA 2

Você se encontra em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica que o deixa mais exposto à infecção pelo vírus da Covid-19 e se sente indignado/a com a negligência do Estado, que não adota medidas sérias e eficazes para evitar que você e outros/as trabalhadores/as corram esse risco. Em um ato de resistência psíquica e política, você decide escrever um diário para registrar o seu testemunho dos acontecimentos extraordinários da pandemia da Covid-19 para que as gerações futuras possam entender como as decisões políticas de um dado momento são determinantes para a história da humanidade.

Escreva um texto de entrada para o seu diário, no qual você deve a) narrar um episódio em que você corre o risco de contrair a Covid-19 em razão de seu trabalho e; b) denunciar, a partir desse episódio, a necropolítica como forma de organização de um Estado negligente em relação à saúde dos mais vulneráveis. Lembre-se de que seu diário servirá de testemunho para que seus descendentes tomem conhecimento do exercício da necropolítica que marcou a pandemia da Covid-19. Para escrever seu texto, leve em conta a coletânea apresentada a seguir.

 

Diário é um gênero textual, geralmente de caráter íntimo, em que se fazem anotações de experiências pessoais cotidianas, e que é organizado pela data de registro dessas anotações. Alguns diários podem ultrapassar o interesse privado do seu autor e interessar a outros possíveis leitores, seja pela pertinência das reflexões pessoais, seja por documentar uma época histórica.

1. Necropolíticaé um conceito desenvolvido pelo filósofo Achille Mbembe que questiona os limites da soberania quando o Estado, baseado em premissas coloniais, racistas e capitalistas, escolhe quem deve viver e quem deve morrer(...). Segundo a pesquisadora Rosane Borges, racismo, capitalismo e necropolítica são inseparáveis. Um sustenta o outro. Aquilo que o capitalismo acha que não serve mais, ele abate, porque são corpos negros. O que se faz com amassa sobrante do mercado de trabalho? O que se faz com o contingente de pessoas que não são absorvidas pelas novas competências técnicas e tecnológicas do capitalismo? Se mata, se exclui. Obviamente que essa mesma massa sobrante são corpos negros, mulheres negras, que foram fundamentais para a acumulação de capital. Corpos que foram escravizados e que hoje não interessam mais para o capital. São pessoas que estão vivendo nas franjas do sistema social, marginalizadas. Nesse processo de marginalização, a gente cria linhas divisórias entrenós e os outros. E esses outros podem ser alvo de tudo. Inclusive da morte.

(Adaptado de O que é necropolítica. Disponível em https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/. Acessado em 15/01/2021.)

 

2. Quais são as consequências dessa pandemia no que diz respeito à reflexão sobre igualdade, interdependência global e nossas obrigações uns com os outros? O vírus não discrimina. Poderíamos dizer que ele nos trata com igualdade, nos colocando igualmente diante do risco de adoecer, perder alguém próximo e de viver em um mundo marcado por uma ameaça iminente. A desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O vírus por si só não discrimina, mas nós, humanos, certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo. Quais mortes chorar? Parece provável que passaremos a ver um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito de viver a custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis de luto e aquelas não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas não valeriam o bastante para serem salvaguardadas contra a doença e a morte.

(Adaptado de Judith Butler, O capitalismo tem seus limites. Disponível emhttps://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2020/03/judith-butler-sobre-a-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/.Acessado em 08/09/2020.)

 

3.

(Adaptado de Pedro Conforte/ Plantão Enfoco. Disponível em https://www.brasildefato.com.br. Acessado em 28/09/2020.)

 

4.

(Adaptadode Confinada. Roteiro de Triscila Oliveira e Ilustração de Leandro Assis. Disponível em @leandro_assis_ilustra. (Instagram). Acessado em14/12/2020.)

 

5. O chefe de governo negou a gravidade do problema, insultou os coveiros, promoveu aglomerações e espalhou desinformação sobre o distanciamento, a higienização e o uso de máscara. Jogou com a vida dos que acreditaram em um remédio inócuo, a cloroquina, e nisso comprometeu o Exército e o SUS. Desmoralizou os médicos Ministros da Saúde, ignorou medidas que inibiriam a evolução da doença e deixou mofar milhões de testes que ajudariam a salvar vidas. Após atribuir poderes políticos às vacinas, o governo federal se dedica agora, negando uma cultura de cem anos, a minar a confiança nelas. Por ele, a pandemia nunca será superada.

(Adaptado de Ruy Castro, Os médicos sobre Bolsonaro. Disponível emhttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2020/12/os-medicos-sobre-bolsonaro.shtml. Acessado em 14/12/2020.)



Comentários

A prova de redação do Vestibular Unicamp 2021 apresentou dois gêneros textuais inéditos, mantendo a tendência verificada nos últimos anos de incorporar às propostas oferecidas ao candidato acontecimentos e discussões pertinentes ao momento atual, estimulando sua visão crítica e valorizando seu conhecimento de mundo.

 

PROPOSTA 1

Na proposta 1, é solicitada a elaboração de um discurso político, motivado por uma polêmica acerca da derrubada de estátuas que enaltecem figuras consideradas, atualmente, violentas e pouco representativas do povo brasileiro, como colonizadores e escravagistas.

Do ponto de vista estrutural da proposta, é solicitado que o texto traga as duas visões em disputa a respeito da polêmica que envolve a retirada das estátuas e que assuma uma dessas visões, argumentando para convencer os estudantes ali presentes que também têm participação na assembleia. Nesse sentido, seria imprescindível que o discurso deixasse evidente que há dois pontos de vista acerca dessa polêmica e quais são eles (ou seja, a visão de quem acredita que as estátuas devem ser retiradas e a visão de quem acredita que as estátuas devem ser mantidas). Esse pode ser um ponto de fragilidade do texto: o candidato que defender um ponto de vista sem explicitar que existe a visão oposta possivelmente terá dificuldade para alcançar a nota máxima em algum dos critérios da grade de correção. Além disso, o texto deve, ainda, argumentar em favor do ponto de vista escolhido, outra habilidade bastante importante para a adequada realização desta proposta.

Como situação de produção, a proposta oferece um contexto bastante verossímil: um candidato a vereador que, tendo um vínculo com a escola pública em que estudou, interessa-se tanto pelas questões referentes à vida escolar como às concernentes à sua vida pública e, por isso, sente-se confortável para discursar em uma assembleia estudantil que discutirá um tema tão relevante. A imagem desse candidato a vereador e desse contexto de produção do texto poderiam certamente ser explorados ao longo do discurso, gênero textual que exige marcas relativamente fixas, como a primeira pessoa do singular, a interpelação do público ouvinte e uso de dêiticos que situem esse discurso no espaço e tempo presentes.

Os textos de apoio oferecidos pela proposta permitem que ambos os posicionamentos sejam defendidos com eficácia: o excerto 1 apresenta uma definição do termo “Bandeirante”, que poderia ser usada para apresentar a discussão (dado que a definição não traz necessariamente um caráter negativo) ou ambientar a argumentação (já que a definição pode ser lida como uma neutralização das ações violentas desse grupo, por exemplo). O excerto 2, trecho de autoria do jornalista Demétrio Magnoli, apresenta um ponto de vista a favor da permanência de estátuas que remetem a um passado que não existe mais – do ponto de vista do jornalista, uma estátua é como uma “cicatriz da história”, algo que deve ser mantido por ser a prova material de que aquele evento ocorreu e apagar essa cicatriz seria um ato covarde de imposição de uma ideologia hegemônica. O excerto 3, uma tirinha da autoria de Alexandre Beck de seu personagem Armandinho, aponta para a relativização do termo “vândalos”, uma vez que, no primeiro quadrinho, o termo parece se aplicar àqueles que teriam pichado o monumento em homenagem aos bandeirantes e, no segundo quadrinho, fica subentendido que os “vândalos” seriam os próprios bandeirantes, que causavam destruição e dor na busca de riquezas. O excerto 4, trecho de autoria de Thiago Amparo, aponta para a possibilidade de se revisitar os monumentos históricos que permeiam a cidade, uma vez que a retirada deles, para o autor, representa uma civilidade muito maior que a representada pela sua construção. O excerto 5, de autoria do historiador Luiz Felipe de Alencastro, destaca de que forma os jesuítas atuaram na manutenção da escravidão dos negros, o que poderia ser usado pelo candidato também como contextualização ou como argumentação. O excerto 6 traz um panorama geral das ações dos bandeirantes, o que poderia ajudar a construir a ideia de que eles agiam de maneira a valorizar apenas seus interesses e não a vida de índios ou negros escravizados.

De um modo geral, as habilidades de exposição de ideias e argumentação foram bem exploradas pela proposta, que trouxe, ainda, espaço para que o candidato pudesse refletir e se colocar a respeito de uma questão tão atual como a da ressignificação de monumentos históricos.

 

PROPOSTA 2 

Na proposta 2, foi solicitada a elaboração de um texto de entrada para um diário, ou seja, uma página de diário, gênero textual que foi definido na própria proposta em um box visualmente destacado.

Para a realização desta proposta, o candidato deveria se colocar no lugar de uma pessoa que, em situação de vulnerabilidade social, sente-se exposta à infecção do vírus da Covid-19 e indignada com a negligência estatal para lidar com essa situação.

O texto deveria ser organizado de modo a apresentar a narração de um episódio em que fique evidente o risco que essa pessoa enfrentou de contrair a Covid-19 por conta de seu trabalho e a denúncia de que o Estado emprega atualmente uma necropolítica em relação à saúde dos mais vulneráveis especialmente no contexto atual de pandemia. É importante ter em mente que a escrita desse texto tem como intenção alertar e informar as futuras gerações sobre a importância da ação estatal em uma situação delicada como a atual.

Como situação de produção, então, esse contexto mais amplo poderia ser bastante explorado: a ideia de uma pessoa que, sentindo-se desamparada e indignada, decide manter um diário como ferramenta de resistência psíquica e política, ou seja, tanto a esfera individual como a esfera social podem ser trabalhadas de forma a construir a imagem desse enunciador e desse contexto geral. Do ponto de vista dos interlocutores, ainda que um diário não necessariamente os pressuponha, a situação de produção evidencia que um dos objetivos dessa escrita é a comunicação com os possíveis leitores futuros do diário, e essa construção também poderia ser explorada pelo candidato.

Os textos da coletânea oferecem os conceitos necessários para a realização de um bom texto: o excerto 1 traz uma definição do termo necropolítica (a ação do Estado que, com base em conceitos contestáveis, decide quem pode morrer e quem pode viver), que deveria ser mandatoriamente incorporado ao texto do candidato para a realização do item b do enunciado. O excerto 2 aponta para a forma como a sociedade desigual em que vivemos expõe de maneira também muito desigual as pessoas de diferentes classes econômicas aos prejuízos causados pelo vírus causador da pandemia de Covid-19. O excerto 3, uma foto que retrata duas realidades distintas – a do trabalhador, negro, que não pode deixar de atuar durante a pandemia ,e a do branco que tem condições necessárias para se exercitar em meio ao mesmo contexto. Essa imagem mimetiza uma situação muito discrepante e, por isso, poderia ser usada como base para a argumentação do candidato em relação às diferenças de possibilidades de se lidar com a pandemia. O excerto 4, tira da série Confinadas, expõe o contexto de muitos trabalhadores que, com ou sem garantias trabalhistas, viram-se obrigados a enfrentar situações perigosas de possível contágio pela Covid-19. O excerto 5, de autoria do escritor Ruy Castro, destaca a atuação do atual governo brasileiro, em especial na figura de seu chefe de governo, na condução do país na atual pandemia, explicitando que ações desastrosas levaram o país ao momento crítico que todos enfrentam. O autor do texto destaca a desinformação, a prescrição de medicamentos sem comprovação e a descredibilização das vacinas como algumas das ações que prejudicam o combate à pandemia. Nesse sentido, o texto poderia ser usado para ilustrar a sensação de desamparo e indignação, que motivam a escrita da página de diário.

Em linhas gerais, a proposta 2 mobilizou estratégias diferentes da exigidas para a elaboração da proposta 1, dado que a construção de uma página pessoal para a reflexão e desabafo, com vistas a eternizar uma crítica social em relação ao momento atual, pressupõe habilidades específicas do candidato, que, no entanto, deve ser capaz de, assim como na proposta 1, traçar paralelos entre uma situação coletiva e uma individual.