Logo UNICAMP

Questão 3 Unicamp 2021 - 2ª fase - dia 1 - Português, Inglês e Redação

Carregar prova completa Compartilhe essa resolução

Questão 3

A falência

A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos.

(Antoine Compagnon, Literatura para quê? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 46-47.)

 

“E tudo dela repugnava a Ruth: a estupidez, a humildade, a cor, a forma, o cheiro; mas percebera que também ali havia uma alma e sofrimento, e então, com lágrimas nos olhos, perguntava a Deus, ao grande Pai misericordioso, por que a criara, a ela, tão branca e tão bonita, e fizera com o mesmo sopro aquela carne de trevas, aquele corpo feio da Sancha imunda? Que reparasse aquela injustiça tremenda e alegrasse em felicidade perfeita o coração da negra.

Sim, o coração dela deve ser da mesma cor que o meu, cismava Ruth, confusa, com os olhos no altar.”

(Júlia Lopes de Almeida, falência. Campinas: Editora da Unicamp, 2018, p. 235.)

 

a) Indique duas palavras do texto de A falência que marcam a tensão entre matéria e espírito. Explique como essa tensão é vivida pela personagem.

b) Relacione as duas últimas frases da passagem do romance com as reflexões de Compagnon, considerando as condições de trabalho na sociedade brasileira ao final do século XIX.



Resolução

a) No excerto, a referência à matéria está presente na palavra “carne”, assim como em “corpo”, “cor”, “forma” e “cheiro”; já o espírito é referido em “alma”, bem como em “sofrimento” e “felicidade”. Para Ruth, há uma tensão entre a repulsa ao corpo de Sancha, fruto de uma formação ainda atrelada à ideia escravocrata de inferioridade do negro, e a constatação de que a criada possui uma alma como a sua, que sofre e que também tem direito à felicidade.

b) Segundo Compagnon, a literatura proporciona o contato com experiências e valores de épocas, espaços e condições de vida diversos e distantes de nossa realidade; assim, devemos entender o conflito de Ruth levando em conta que a sociedade brasileira, no final do século XIX, vivia a passagem da escravidão para o trabalho livre. Isso posto, as reflexões da personagem a respeito de Sancha e sua confusão ao cogitar que “o coração dela deve ser da mesma cor que o meu” evidenciam, por um lado, sua formação oriunda de um contexto escravocrata, em que o racismo era uma prática comum e naturalizada. Por outro, verifica-se o nascimento de uma sensibilidade que, embora não supere esse racismo, apresenta uma nova perspectiva em que a pessoa negra é humanizada e passa a ser vista de modo mais igualitário. Dessa forma, o impasse vivido por Ruth no romance “a Falência”, ao constatar a “injustiça tremenda” sofrida pela criada, evidencia ao leitor contemporâneo o modo como as questões raciais eram percebidas e discutidas no contexto social no qual a obra circulou pela primeira vez.