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Questão 12 Unesp 2021 - 1ª fase - dia 2

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Questão 12

textos literários

Para responder às questões de 12 a 16, leia o trecho do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense. De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio. O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de pôr denúncia. E meus feitos já revogaram, prescrição dita. Tenho meu respeito firmado. Agora, sou anta empoçada, ninguém me caça. Da vida pouco me resta — só o deo-gratias; e o troco. Bobeia. Na feira de São João Branco, um homem andava falando: — “A pátria não pode nada com a velhice...” Discordo. A pátria é dos velhos, mais. Era um homem maluco, os dedos cheios de anéis velhos sem valor, as pedras retiradas — ele dizia: aqueles todos anéis davam até choque elétrico... Não. Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar. Guerras e batalhas? Isso é como jogo de baralho, verte, reverte. Os revoltosos depois passaram por aqui, soldados de Prestes, vinham de Goiás, reclamavam posse de todos os animais de sela. Sei que deram fogo, na barra do Urucuia, em São Romão, aonde aportou um vapor do Governo, cheio de tropas da Bahia. Muitos anos adiante, um roceiro vai lavrar um pau, encontra balas cravadas. O que vale, são outras coisas. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. [...] Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.

(Grande sertão: veredas, 2015.)


No texto, o narrador



a)

sugere que a narração de eventos significativos não permite uma visão abrangente da vida.

b)

admite que sua narrativa sinuosa visa confundir e enganar o seu interlocutor.

c)

sugere que a narração de eventos significativos não cabe em uma narrativa linear.

d)

alega que sua narrativa linear busca conferir coerência e sentido a uma vida de desacertos.

e)

alega que uma narrativa sinuosa conduz a uma compreensão limitada da existência. 

Resolução

a) Incorreta. Apesar de narrar acontecimentos passados de forma não linear, o narrador tem uma visão abrangente de sua vida, fato comprovado pelas várias histórias descritas no trecho. Segundo ele, “de cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. [...] Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data”.

b) Incorreta. O narrador admite que sabe que sua narrativa é sinuosa e se justifica mencionando que “Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense (...) Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar”. Em vista disso, é incorreto afirmar que há qualquer intenção de confundir e enganar o interlocutor.

c) Correta. Logo no início do texto, o narrador menciona: “Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense”. No trecho, “desemendar” indica que a narração dos fatos não segue uma ordem cronológica e linear. O que justifica essa desordem é que “a lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância”. Assim, apenas as coisas insignificantes cabem em uma narrativa linear. Por extensão, é possível afirmar que a narração de eventos significativos não cabe em uma narrativa linear.

d) Incorreta. Os relatos do narrador não são lineares, mas “desemendados”.

e) Incorreta. Embora o narrador tenha contado suas histórias de forma sinuosa, ele afirma que “De grave, na lei do comum, disse ao senhor quase tudo. Não crio receio (...) Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa”. Desse modo, o narrador demonstra-se lúcido e consciente sobre suas vivências.