Para responder às questões de 17 a 19, leia o trecho da peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha. A peça foi encenada em 1960 na arena da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil e promoveu um amplo debate. A mobilização resultante desse debate desencadeou a criação do Centro Popular de Cultura (CPC).
CORO DOS DESGRAÇADOS: Trabalhamos noite e dia, dia e noite sem parar! Então de nada precisamos, se só precisamos trabalhar! Há mil anos sem parar! Fizemos as correntes que nos botaram nos pés, fizemos a Bastilha onde fomos morar, fizemos os canhões que vão nos apontar. Há mil anos sem parar! Não mandamos, não fugimos, não cheiramos, não matamos, não fingimos, não coçamos, não corremos, não deitamos, não sentamos: trabalhamos. Há mil anos sem parar! Ninguém sabe nosso nome, não conhecemos a espuma do mar, somos tristes e cansados. Há mil anos sem parar! Eu nunca ri — eu nunca ri — sempre trabalhei. Eu faço charutos e fumo bitucas, eu faço tecidos e ando pelado, eu faço vestido pra mulher, e nunca vi mulher desvestida. Há mil anos sem parar! Maria esqueceu de mim e foi morar com seu Joaquim. Há mil anos sem parar!
(Apito longo. Um cartaz aparece: “Dois minutos de descanso e lamba as unhas.”
Todos vão tentar sentar.
Menos o Desgraçado 4 que fica de pé furioso.)
DESGRAÇADO 1: Ajuda-me aqui, Dois. Eu quero me dá uma sentadinha.
(Desgraçado 2 ri de tudo.)
DESGRAÇADO 3: Senta. (Desgraçado 1 vai pôr a cabeça no chão.) De assim, não. Acho que não é com a cabeça não.
DESGRAÇADO 1: Eu esqueci.
DESGRAÇADO 3: A bunda, põe ela no chão. A perna é que eu não sei.
DESGRAÇADO 2: A perna tira.
(Desgraçado 3 e Desgraçado 2 desistem de descobrir. Se atiram no chão.)
DESGRAÇADO 1: A perna dobra! (Senta. Satisfeito.)
DESGRAÇADO 2: Quero ver levantar.
(Todos olham para Desgraçado 4, fazem sinais para que ele se sente.)
DESGRAÇADO 4: Não! Chega pra mim! Eu só trabalho, trabalho, trabalho… (Perde o fôlego.)
DESGRAÇADO 3: Eu te ajudo: trabalho, trabalho, trabalho...
DESGRAÇADO 4: E tenho dois minutos de descanso? Nunca vi o sol, não tomei leite condensado, não canto na rua, esqueci do sentar, quando chega a hora de descansar, fico pensando na hora de trabalhar! Chega!
SLIDE: Quem canta seus males espanta.
DESGRAÇADO 1: (cantando) A paga vem depois que a gente morre! Você vira um anjo todo branco, rindo sempre da brancura, bebe leite em teta de nuvem, não tem mais fome, não tem saudade, pinta o céu de cor de felicidade!
(Peças do CPC, 2016. Adaptado.)
O texto mostra-se crítico em relação ao conteúdo da seguinte citação:
a) |
“O trabalho não é vergonha, é só uma maldição.” |
b) |
“O homem é o lobo do homem.” |
c) |
“O homem nasce livre, a sociedade o corrompe.” |
d) |
“O trabalho dignifica e enobrece o homem.” |
e) |
“Onde não há lei, não há liberdade.” |
A leitura do excerto selecionado pela banca, para esse exercício, nos permitiria destacar alguns trechos para sustentar a seguinte tese: a peça critica uma ideia comum na tradição ocidental, a saber, a ideia de que o trabalho dignifica a pessoa humana. Desses trechos, citaremos dois:
- "Trabalhamos noite e dia, dia e noite sem parar! Então de nada precisamos, se só precisamos trabalhar! Há mil anos sem parar! Fizemos as correntes que nos botaram nos pés, fizemos a Bastilha onde fomos morar, fizemos os canhões que vão nos apontar"
- "E tenho dois minutos de descanso? Nunca vi o sol, não tomei leite condensado, não canto na rua, esqueci do sentar, quando chega a hora de descansar, fico pensando na hora de trabalhar! Chega!"
Agora, com os trechos destacados, relembremo-nos do enunciado (O texto mostra-se crítico em relação ao conteúdo de qual citação?) e vejamos as alternativas:
a) Incorreta. A frase "O trabalho não é vergonha, é só uma maldição” é de Guimarães Rosa e, nas entrelinhas, nos faz lembrar da etimologia do termo (tripalium), que remonta a instrumentos de tortura. Como essa ideia, de alguma maneira, está presente no texto, essa alternativa não pode ser correta. Não nos esqueçamos do enunciado... o texto mostra-se crítico a qual citação? Certamente, não essa citação, que por ele, no fundo, é endossada.
b) Incorreta. A frase "O homem é lobo do homem" é do pensador britânico Thomas Hobbes e, assim como no caso da frase anterior, ela carrega uma ideia que faz pano de fundo ao texto: o homem está sempre disposto a aproveitar do outro; se puder, aliás, faz mais que isso... castiga, maltrata. Nesse sentido, também não encontramos, aqui, uma citação sob suspeita, mas, sim, uma citação sob endosso.
c) Incorreta. "O homem nasce livre, a sociedade o corrompe" - mais uma frase clássica do universo filosófico foi utilizada nesse exercício. Cunhada pelo iluminista Jean-Jacques Rousseau, a frase sintetiza a deterioração do bom selvagem que, distante de sua vida primária e natural, deixou sua empatia e seu altruísmo serem substituídos pelo egoísmo, a indiferença e a ganância, elementos que estão presentes na peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, de Oduvaldo Vianna Filho.
d) Correta. Sem dúvida podemos afirmar que a ideia presente na citação "O trabalho dignifica e enobrece o homem” remete à longa data, já que é ideia presente, no mínimo, desde a tradição judaico-cristã, e sustentada pelas morais dessas culturas e de outras que, depois delas, surgiram - como a moral protestante. Em todos esses raciocínios, o trabalho é sinal de benção, glória, salvação, retidão, solidariedade, harmonia, união, etc. É aquilo que costumamos chamar de "visão positiva do trabalho". Nenhuma dessas morais pensou o trabalho como exploração, maldição, sofrimento, exploração ou disputa, justamente como o texto nos mostra e, assim, critica esse demasiado otimismo sobre o ato de trabalhar e as relações de trabalho.
e) Incorreta. "Onde não há lei, não há liberdade". John Locke, pensador político do Mundo Moderno, escreveu essa frase no século XVIII para explicar a importância do contrato social enquanto pacto jurídico-político responsável pela salvaguarda de nossos direitos naturais, entre eles o direito à liberdade. No treco que a Unesp selecionou, da peça A mais-valia vai acabar, seu Edgar, há, também, o espírito dessa ideia, em cada uma das linhas que lemos. Ora, os trabalhadores explorados, representados pelos desgraçados que, tão desgraçados que são, não possuem sequer um nome, estão longe de usufruir de suas liberdades porque o espaço das relações de trabalho - dentro das fábricas, por exemplo -, é espaço sem lei, espaço dominado pelo arbítrio do patrão, que manda e desmanda sob a égide do autoritarismo. Por isso, mais uma vez, temos aqui a confirmação de uma ideia, não uma critica, como pede o enunciado.