De maneira que, assim como a natureza faz de feras homens, matando e comendo, assim também a graça faz de feras homens, doutrinando e ensinando. Ensinastes o gentio bárbaro e rude, e que cuidais que faz aquela doutrina? Mata nele a fereza, e introduz a humanidade; mata a ignorância, e introduz o conhecimento; mata a bruteza, e introduz a razão; mata a infidelidade, e introduz a fé; e deste modo, por uma conversão admirável, o que era fera fica homem, o que era gentio fica cristão, o que era despojo do pecado fica membro de Cristo e de S. Pedro. […] Tende-os [os escravos], cristãos, e tende muitos, mas tende-os de modo que eles ajudem a levar a vossa alma ao céu, e vós as suas. Isto é o que vos desejo, isto é o que vos aconselho, isto é o que vos procuro, isto é o que vos peço por amor de Deus e por amor de vós, e o que quisera que leváreis deste sermão metido na alma.
(Antônio Vieira. “Sermão do Espírito Santo” (1657). http://tupi.fflch.usp.br.)
O Sermão do Espírito Santo foi pregado pelo Padre Antônio Vieira em São Luís do Maranhão, em 1657, e recorre
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a metáforas, para defender a liberdade de natureza de todos os animais criados por Deus. |
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à ironia, para condenar a escravização de nativos e africanos nas lavouras de algodão. |
c) |
a antíteses, para reconhecer a escravização dos nativos como um caminho possível do trabalho missionário. |
d) |
à retórica barroca, para contestar a ideia de que os africanos e os nativos merecem a liberdade e a salvação. |
e) |
à retórica clássica, para acusar os proprietários de escravos de descuidar dos direitos humanos dos nativos. |
a) Incorreta. No excerto transcrito, Vieira não explora primordialmente as metáforas, mas as oposições entre os indígenas no seu estado “natural” e após a sua conversão ao cristianismo. Desse modo, não defende a liberdade de natureza, uma vez que destaca a necessidade de ensinar e doutrinar “o gentio bárbaro e rude” a fim de promover uma transformação considerada benéfica e necessária para a salvação de sua alma.
b) Incorreta. A ironia, figura de linguagem que consiste em sugerir o contrário do que se afirma, não está presente no discurso apresentado. Vieira não pretende condenar a escravização; pelo contrário, defende que se tenha escravos, desde que haja um esforço doutrinador, por parte do escravizador, com vistas à salvação das almas.
c) Correta. O excerto estrutura-se a partir de uma série de antíteses que ressaltam a oposição entre o nativo antes e depois da doutrinação: natureza X graça, fereza X humanidade, ignorância X conhecimento, bruteza X razão, infidelidade X fé... Nesse sentido, a escravização delineia-se como um caminho possível do trabalho missionário, conforme afirma Vieira no trecho: “Tende-os [os escravos], cristãos, e tende muitos, mas tende-os de modo que eles ajudem a levar a vossa alma ao céu, e vós as suas.”
d) Incorreta. A retórica, enquanto exploração da razão e da emoção na estruturação argumentativa como meio de persuasão, é característica fundamental dos sermões de Vieira; no entanto, o discurso construído leva à defesa (e não à contestação) da salvação das almas dos gentios por meio do ensinamento e da doutrinação.
e) Incorreta. Conforme afirmado anteriormente, Vieira recorre à retórica, de origem clássica, para persuadir os fiéis; mas, no excerto, os proprietários de escravos não são acusados de descuidar dos direitos humanos dos nativos; a intenção do pregador é convencê-los a promover a conversão de seus escravos à doutrina cristã, “de modo que eles ajudem a levar a vossa alma ao céu, e vós as suas”.