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Questão 4 Unesp 2021 - 1ª fase - dia 1

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Questão 4

Ambiguidade e Polissemia

Há o hipotrélico. O termo é novo, de impesquisada origem e ainda sem definição que lhe apanhe em todas as pétalas o significado. Sabe-se, só, que vem do bom português. Para a prática, tome-se hipotrélico querendo dizer: antipodático, sengraçante imprizido; ou, talvez, vice-dito: indivíduo pedante, importuno agudo, falto de respeito para com a opinião alheia. Sob mais que, tratando-se de palavra inventada, e, como adiante se verá, embirrando o hipotrélico em não tolerar neologismos, começa ele por se negar nominalmente a própria existência.
Somos todos, neste ponto, um tento ou cento hipotrélicos? Salvo o excepto, um neologismo contunde, confunde, quase ofende. Perspica-nos a inércia que soneja em cada canto do espírito, e que se refestela com os bons hábitos estadados. Se é que um não se assuste: saia todo-o-mundo a empinar vocábulos seus, e aonde é que se vai dar com a língua tida e herdada? Assenta-nos bem à modéstia achar que o novo não valerá o velho; ajusta-se à melhor prudência relegar o progresso no passado. [...]

Já outro, contudo, respeitável, é o caso — enfim — de “hipotrélico”, motivo e base desta fábula diversa, e que vem do bom português. O bom português, homem-de-bem e muitíssimo inteligente, mas que, quando ou quando, neologizava, segundo suas necessidades íntimas.

Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, tercei- ro, ausente:
— E ele é muito hiputrélico...
Ao que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu o veto:
— Olhe, meu amigo, essa palavra não existe.
Parou o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo:
— Como?!... Ora... Pois se eu a estou a dizer?
— É. Mas não existe.
Aí, o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom já feliz de descoberta, e apontando para o outro, peremptório:
— O senhor também é hiputrélico...
E ficou havendo.

(Tutameia, 1979.)


O efeito cômico do texto deriva, sobretudo, da ambiguidade da expressão



a)

“homem-de-bem”.

b)

“bom português”.

c)

“indesejável maçante”.

d)

“necessidades íntimas”.

e)

“indivíduo pedante”.

Resolução

a) Incorreta. A expressão “homem-de-bem” aparece apenas em uma ocorrência no texto, no terceiro parágrafo, intentando esclarecer o significado de “bom português”. Ela está relacionada a apenas um sentido: alguém bem-intencionado, correto em sua conduta.

b) Correta. A expressão “bom português” aparece no primeiro parágrafo (“Sabe-se, só, que vem do bom português”). Nesse primeiro momento, o substantivo português possui como referente a língua portuguesa, o idioma português, o que também ocorre na primeira ocorrência dessa expressão no terceiro parágrafo (“fábula diversa, e que vem do bom português”). Logo após essa segunda ocorrência, entretanto, o autor emprega a mesma expressão com um referente diverso, ou seja, “O bom português” passa a ter como significado (conforme esclarece o aposto) “homem-de-bem e muitíssimo inteligente”, de origem portuguesa. A partir desse momento, o narrador para a referenciar tal expressão sempre como esta pessoa. Em razão disso, a expressão “bom português” assume, nesse texto, um duplo sentido, utilizado pelo autor do texto justamente com o intuito de provocar um efeito cômico.  

c) Incorreta. A expressão “indesejável maçante” aparece apenas uma vez no texto, no sexto parágrafo, para fazer referência ao interlocutor do “bom português”, qualificando-o de forma negativa. Nessa ocorrência não apresenta sentidos duplos ou ambíguos, pois, de fato, significa alguém que aborrece e tem algo que não se deseja.

d) Incorreta. A expressão “necessidades íntimas” aparece apenas em uma ocorrência no texto, no terceiro parágrafo. Nesta, seu sentido é único, pois significa os anseios do “bom português”. Embora o adjetivo “íntimo” possa assumir polissemia, quando relacionado a contextos de afetividade, ou ainda a contextos de regiões genitais, essas possibilidades não foram exploradas pelo texto, nem constituíram efeito cômico.

e) Incorreta. A expressão “indivíduo pedante” aparece no texto apenas no primeiro parágrafo. Em tal circunstância, o narrador está descrevendo a figura do hipotrélico, e utiliza a expressão (junto a várias outras) exatamente para esclarecer o sentido do termo, tentando torná-lo mais claro. Desse modo, não assume sentidos duplos ou ambíguos, pois significa realmente alguém que ostenta conhecimentos e erudição de forma inoportuna.