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Questão 16 Unesp 2021 - 1ª fase - dia 1

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Questão 16

textos literários

Leia a narrativa “O leão, o burro e o rato”, de Millôr Fernandes

Um leão, um burro e um rato voltaram, afinal, da caçada que haviam empreendido juntos1 e colocaram numa clareira tudo que tinham caçado: dois veados, algumas perdizes, três tatus, uma paca e muita caça menor. O leão sentou-se num tronco e, com voz tonitruante que procurava inutilmente suavizar, berrou:

— Bem, agora que terminamos um magnífico dia de trabalho, descansemos aqui, camaradas, para a justa partilha do nosso esforço conjunto. Compadre burro, por favor, você, que é o mais sábio de nós três, com licença do compadre rato, você, compadre burro, vai fazer a partilha desta caça em três partes absolutamente iguais. Vamos, compadre rato, até o rio, beber um pouco de água, deixando nosso grande amigo burro em paz para deliberar.

Os dois se afastaram, foram até o rio, beberam água² e ficaram um tempo. Voltaram e verificaram que o burro tinha feito um trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caça em três partes absolutamente iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro perguntou ao leão:

— Pronto, compadre leão, aí está: que acha da partilha?

O leão não disse uma palavra. Deu uma violenta patada na nuca do burro, prostrando-o no chão, morto.

Sorrindo, o leão voltou-se para o rato e disse:

— Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impressão de que concorda em que não podíamos suportar a presença de tamanha inaptidão e burrice. Desculpe eu ter perdido a paciência, mas não havia outra coisa a fazer. Há muito que eu não suportava mais o compadre burro. Me faça um favor agora — divida você o bolo da caça, incluindo, por favor, o corpo do compadre burro. Vou até o rio, novamente, deixando-lhe calma para uma deliberação sensata.

Mal o leão se afastou, o rato não teve a menor dúvida. Dividiu o monte de caça em dois: de um lado, toda a caça, inclusive o corpo do burro. Do outro, apenas um ratinho cinza morto por acaso. O leão ainda não tinha chegado ao rio, quando o rato o chamou:

— Compadre leão, está pronta a partilha!

O leão, vendo a caça dividida de maneira tão justa, não pôde deixar de cumprimentar o rato:

— Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como você chegou tão depressa a uma partilha tão certa?

E o rato respondeu:

— Muito simples. Estabeleci uma relação matemática entre seu tamanho e o meu — é claro que você precisa comer muito mais. Tracei uma comparação entre a sua força e a minha — é claro que você precisa de muito maior volume de alimentação do que eu. Comparei, ponderadamente, sua posição na floresta com a minha — e, evidentemente, a partilha só podia ser esta. Além do que, sou um intelectual, sou todo espírito!

— Inacreditável, inacreditável! Que compreensão! Que argúcia! — exclamou o leão, realmente admirado. — Olha, juro que nunca tinha notado, em você, essa cultura. Como você escondeu isso o tempo todo, e quem lhe ensinou tanta sabedoria?

— Na verdade, leão, eu nunca soube nada. Se me perdoa um elogio fúnebre, se não se ofende, acabei de aprender tudo agora mesmo, com o burro morto.

Moral: Só um burro tenta ficar com a parte do leão.

¹A conjugação de esforços tão heterogêneos na destruição do meio ambiente é coisa muito comum.

²Enquanto estavam bebendo água, o leão reparou que o rato estava sujando a água que ele bebia. Mas isso já é outra fábula.

(100 fábulas fabulosas, 2012.)


A narrativa de Millôr Fernandes afasta-se do modelo tradicional da fábula na medida em que emprega um tom



a)

moralizante.

b)

fantástico.

c)

lacônico.

d)

ambíguo.

e)

paródico.

Resolução

a) Incorreta. A narrativa de fato apresenta um tom moralizante, ainda que ele seja apresentado de forma um pouco irônica. No entanto, isso não faz com que o texto se afaste do modelo tradicional da fábula, dado que esse gênero sempre apresenta, justamente, um ensinamento moral.

b) Incorreta. O fantástico, na literatura, está relacionado a elementos que quebrem a lógica de verossimilhança comumente aceita e provoquem certo estranhamento, percebido tanto por parte do leitor, quanto por parte de algum personagem que não aceite facilmente a lógica empregada de associação de elementos que não se explicam. Nesse sentido. pode-se afirmar que não há nenhum elemento que indique a adoção de um tom fantástico ao longo da narrativa. Obs.: Deve-se estar atento também para não confundir fantástico com elementos fantasiosos como a personificação de personagens não humanos, o que constitui efeito expressivo e não categorização fantástica.

c) Incorreta. A narrativa apresenta uma linguagem clara e precisa, assim como as fábulas tradicionais, no entanto, isso não é suficiente para caracterizar o tom adotado pelo autor como lacônico, ou seja, sucinto, breve.

d) Incorreta. O único trecho que poderia ser considerado ambíguo ao longo da narrativa seria a "Moral" que ela apresenta, em que o termo "burro" pode ser lido de duas maneiras diferentes. Isso, no entanto, não afasta a narrativa dos modelos tradicionais da fábula. 

e) Correta. O autor emprega um tom paródico ao construir uma narrativa com estrutura similar à de uma fábula, mas com um desfecho que ironiza os comportamentos descritos ao longo do texto. Isso faz com que essa narrativa se distancie do modelo tradicional de fábula, pois, nesse gênero, em geral, não há comportamentos apresentados de forma irônica.