Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Cantar uma sabiá
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer
(www.chicobuarque.com.br)
A canção “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, foi apresentada no III Festival Internacional da canção, em setembro de 1968, durante o regime militar brasileiro. Sua letra
a) |
recorre à relação intertextual, para criticar a repressão e as perseguições políticas no país. |
b) |
explora a metáfora do voo do pássaro, para propor ação e mobilização popular contra as perseguições políticas. |
c) |
valoriza a esfera íntima e pessoal, para rebater o engajamento político-social de intelectuais e artistas. |
d) |
adota o recurso da repetição e do paralelismo, para defender a continuidade do regime militar. |
e) |
menciona aves e plantas, para defender a adoção de política ambiental sustentável pelo governo. |
a) Correta. A canção Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, foi vitoriosa no III Festival Internacional da Canção, realizado no ano de 1968, ano que também representa o início do auge da repressão ditatorial no Brasil. A canção traz uma interpretação refinada e metafórica do ambiente político da época, e acabou por deixar em segundo lugar uma composição abertamente engajada, que era Para não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré. A letra de Sabiá estabelece uma relação intertextual com um clássico do Romantismo nacional, que é a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, recorrendo a um texto conhecido para evocar imagens já estabelecidas no cenário cultural brasileiro e ressignificá-las. Enquanto a poesia de Gonçalves Dias exalta as características do Brasil e destaca a saudade que o eu-lírico possuía de sua terra natal (à época da escrita do poema, em 1843, Dias estava em Coimbra), a ressignifcação trazida pela letra de Chico Buarque e pela melodia de Tom Jobim consiste em lamentar a situação do país em 1968, marcada pela repressão política da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), trazendo a imagem de um eu-lírico - que pode estar exilado ou desencantado com seu país - ansioso por um regresso, seja físico ou seja o retorno de uma situação político-social sem repressões, que permita aos cidadãos brasileiros tornarem a ouvir a canção do sabiá, ave já reconhecida como símbolo nacional.
b) Incorreta. A metáfora do voo do pássaro não é utilizada para se incitar necessariamente a ação política e a mobilização popular, mas sim para representar algo que partiu e anuncia o desejo de um dia regressar. Essa partida e regresso podem ser entendidas como o regresso do exílio - a saída do país teria sido forçada em um contexto de repressão política, censura, ditadura e perseguição - ou ainda como o anúncio de liberdades perdidas que um dia hão de voltar, restaurando o Brasil e suas práticas polítcas e culturais a um estatuto que foi perdido com a chegada da ditadura.
c) Incorreta. A letra da canção e seus simbolismos estabelecem uma relação entre a esfera pessoal do eu-lírico e a situação político-social do país. Dessa forma, não há nenhum tipo de refutação do engajamento de artistas e intelectuais em detrimento de uma visão mais pessoal da realidade, mas sim a possibilidade de diálogo entre essas duas esferas.
d) Incorreta. Recursos como a repetição (anáfora) e o pararelismo podem ser observados em versos como "Vou voltar / Sei que ainda vou voltar" e "De uma palmeira / Que já não há / Colher a flor / Que já não dá". Mas esses recursos possuem finalidade estética, não defendendo de forma alguma a continuidade do regime militar. Não apenas essa canção em específico, mas parte expressiva da produção artística do autor da letra da música consiste em críticas marcantes ao governo militar, como Apesar de Você, Vai Passar, Angélica e Cálice (composta em parceria com Gilberto Gil).
e) Incorreta. As imagens da fauna e da flora brasileira não possuem ligação direta com a defesa de uma política ambiental sustentável, mas sim buscam a ressignificação de símbolos pungentes da beleza do país, evocando também o legado da poesia romântica. Além disso, o governo militar não foi caracterizado por nenhuma discussão profunda sobre meio-ambiente e sustentabilidade, sendo que o debate brasileiro sobre o tema fez-se mais presente a partir da década de 1990.