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Questão 66 Fuvest 2021 - 1ª fase

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Questão 66

Angústia

- Posso furar os olhos do povo? Esta frase besta foi repetida muitas vezes e, em falta de coisa melhor, aceitei-a. Sem dúvida. As mulheres hoje não vivem como antigamente, escondidas, evitando os homens. Tudo é descoberto, cara a cara. Uma pessoa topa outra. Se gostou, gostou; se não gostou, até logo. E eu de fato não tinha visto nada. As aparências mentem. A terra não é redonda? Esta prova da inocência de Marina me pareceu considerável. Tantos indivíduos condenados injustamente neste mundo ruim! O retirante que fora encontrado violando afilha de quatro anos - estava ai um exemplo. As vizinhas tinham visto o homem afastando as pernas da menina, todo o mundo pensava que ele era um monstro. Engano. Quem pode lá jurar que isto é assim ou assado? Procurei mesmo capacitar-me de que Julião Tavares não existia. Julião Tavares era uma sensação. Uma sensação desagradável, que eu pretendia afastar de minha casa quando me juntasse àquela sensação agradável que ali estava a choramingar.


Graciliano Ramos, Angústia.

Em termos críticos, esse fragmento permite observar que, no plano maior do romance Angústia, o ponto de vista



a)

se acomoda nos limites da vulgaridade.

b)

tenta imitar a retórica dos dominantes.

c)

reproduz a lógica do determinismo social.

d)

atinge a neutralidade do espírito maduro.

e)

revira os lados contrários da opinião.

Resolução

a) Incorreta. Inicialmente, parece que Luís da Silva se acomoda, pois afirma ter aceitado uma “frase besta” que “foi repetida inúmeras vezes”. No entanto, considerando o excerto como um todo, o narrador-personagem se contrapõe a um ponto de vista que poderia ser considerado “vulgar” (tomando-se o sentido de algo “banal”, “comum”). Afirma, por exemplo, que “As aparências mentem”; mais adiante, indaga: “Quem pode lá jurar que isto é assim ou assado?”.

b) Incorreta. No fragmento, Luís da Silva claramente se opõe à retórica dos dominantes ao exclamar: “Tantos indivíduos condenados injustamente neste  mundo ruim!”. Em seguida, justifica sua afirmação, relembrando o caso do retirante acusado de violar a filha, considerado um monstro por ter sido visto “afastando as pernas da menina”. Entretanto, segundo Luís, tratava-se de um engano. Nota-se, portanto, que o narrador-personagem identifica-se com aqueles que julga injustiçados, afastando-se, assim, dos discursos dominantes na sociedade.

c) Incorreta. Não há indícios na fala de Luís da Silva que corroborem o determinismo social (segundo o qual os indivíduos estão submetidos a um conjunto de condições sociais que determinam suas ações). Ao refletir sobre as mulheres, por exemplo, afirma que “hoje (elas) não vivem como antigamente, escondidas, evitando os homens”. Em relação a Marina, aceita sua inocência, uma vez que “de fato não tinha visto nada”. Assim, refuta a ideia segundo a qual comportamento feminino seria ditado por regras imutáveis - no primeiro caso, tal comportamento varia no tempo e, no segundo, a noção de culpa é relativizada.

d) Incorreta. Não há neutralidade no discurso de Luís da Silva, mas a exposição de seu ponto de vista em várias passagens do fragmento (“As aparências mentem”; “Tantos indivíduos condenados injustamente neste  mundo ruim!”). Além disso, refere-se a Julião Tavares como uma “sensação desagradável” que pretende afastar de sua casa, expressando claramente seu incômodo em relação a ele.

e) Correta. No fragmento apresentado, Luís da Silva explora as oposições entre opiniões, questiona o certo e o errado, a aparência e a verdade. Tal movimento é verificado quando questiona a visão de monstro atribuída por “todo o mundo” ao retirante que teria violado a própria filha. O confronto entre lados contrários da opinião também é explicitado nas seguintes passagens: “As aparências mentem”, “Quem pode lá jurar que isto é assim ou assado?” e “Tantos indivíduos condenados injustamente neste  mundo ruim!”.