- Posso furar os olhos do povo? Esta frase besta foi repetida muitas vezes e, em falta de coisa melhor, aceitei-a. Sem dúvida. As mulheres hoje não vivem como antigamente, escondidas, evitando os homens. Tudo é descoberto, cara a cara. Uma pessoa topa outra. Se gostou, gostou; se não gostou, até logo. E eu de fato não tinha visto nada. As aparências mentem. A terra não é redonda? Esta prova da inocência de Marina me pareceu considerável. Tantos indivíduos condenados injustamente neste mundo ruim! O retirante que fora encontrado violando afilha de quatro anos - estava ai um exemplo. As vizinhas tinham visto o homem afastando as pernas da menina, todo o mundo pensava que ele era um monstro. Engano. Quem pode lá jurar que isto é assim ou assado? Procurei mesmo capacitar-me de que Julião Tavares não existia. Julião Tavares era uma sensação. Uma sensação desagradável, que eu pretendia afastar de minha casa quando me juntasse àquela sensação agradável que ali estava a choramingar.
Graciliano Ramos, Angústia.
Em termos críticos, esse fragmento permite observar que, no plano maior do romance Angústia, o ponto de vista
a) |
se acomoda nos limites da vulgaridade. |
b) |
tenta imitar a retórica dos dominantes. |
c) |
reproduz a lógica do determinismo social. |
d) |
atinge a neutralidade do espírito maduro. |
e) |
revira os lados contrários da opinião. |
a) Incorreta. Inicialmente, parece que Luís da Silva se acomoda, pois afirma ter aceitado uma “frase besta” que “foi repetida inúmeras vezes”. No entanto, considerando o excerto como um todo, o narrador-personagem se contrapõe a um ponto de vista que poderia ser considerado “vulgar” (tomando-se o sentido de algo “banal”, “comum”). Afirma, por exemplo, que “As aparências mentem”; mais adiante, indaga: “Quem pode lá jurar que isto é assim ou assado?”.
b) Incorreta. No fragmento, Luís da Silva claramente se opõe à retórica dos dominantes ao exclamar: “Tantos indivíduos condenados injustamente neste mundo ruim!”. Em seguida, justifica sua afirmação, relembrando o caso do retirante acusado de violar a filha, considerado um monstro por ter sido visto “afastando as pernas da menina”. Entretanto, segundo Luís, tratava-se de um engano. Nota-se, portanto, que o narrador-personagem identifica-se com aqueles que julga injustiçados, afastando-se, assim, dos discursos dominantes na sociedade.
c) Incorreta. Não há indícios na fala de Luís da Silva que corroborem o determinismo social (segundo o qual os indivíduos estão submetidos a um conjunto de condições sociais que determinam suas ações). Ao refletir sobre as mulheres, por exemplo, afirma que “hoje (elas) não vivem como antigamente, escondidas, evitando os homens”. Em relação a Marina, aceita sua inocência, uma vez que “de fato não tinha visto nada”. Assim, refuta a ideia segundo a qual comportamento feminino seria ditado por regras imutáveis - no primeiro caso, tal comportamento varia no tempo e, no segundo, a noção de culpa é relativizada.
d) Incorreta. Não há neutralidade no discurso de Luís da Silva, mas a exposição de seu ponto de vista em várias passagens do fragmento (“As aparências mentem”; “Tantos indivíduos condenados injustamente neste mundo ruim!”). Além disso, refere-se a Julião Tavares como uma “sensação desagradável” que pretende afastar de sua casa, expressando claramente seu incômodo em relação a ele.
e) Correta. No fragmento apresentado, Luís da Silva explora as oposições entre opiniões, questiona o certo e o errado, a aparência e a verdade. Tal movimento é verificado quando questiona a visão de monstro atribuída por “todo o mundo” ao retirante que teria violado a própria filha. O confronto entre lados contrários da opinião também é explicitado nas seguintes passagens: “As aparências mentem”, “Quem pode lá jurar que isto é assim ou assado?” e “Tantos indivíduos condenados injustamente neste mundo ruim!”.