Rubião fitava a enseada, - eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo, cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas em verdade vos digo que pensava em outra coisa. Cotejava o passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora! Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade.
-Vejam como Deus escreve direito por linhas tortas, pensa ele. Se mana Piedade tem casado com Quincas Borba, apenas me daria uma esperança colateral. Não casou; ambos morreram, e aqui está tudo comigo; de modo que o que parecia uma desgraça...
Machado de Assis, Quincas Borba.
O primeiro capítulo de Quincas Borba já apresenta ao leitor um elemento que será fundamental na construção do romance:
a) |
a contemplação das paisagens naturais, como se lê em "ele admirava aquele pedaço de água quieta". |
b) |
a presença de um narrador-personagem, como se lê em "em verdade vos digo que pensava em outra coisa". |
c) |
a sobriedade do protagonista ao avaliar o seu percurso, como se lê em "Cotejava o passado com o presente". |
d) |
o sentido místico e fatalista que rege os destinos, como se lê em "Deus escreve direito por linhas tortas". |
e) |
a reversibilidade entre o cómico e o trágico, como se lê em "de modo que o que parecia uma desgraça...". |
a) Incorreta. A contemplação de paisagens naturais não é fundamental na construção do romance, sendo o ambiente da sociedade urbana, com a mudança de Rubião para o Rio de Janeiro, o espaço principal em que o enredo se desenrola.
b) Incorreta. O romance tem um narrador em terceira pessoa onisciente; entretanto, como notamos frequentemente nas narrativas machadianas, tal narrador dialoga com seus leitores, como ocorre no trecho “em verdade vos digo que pensava em outra coisa”.
c) Incorreta. Rubião analisa sua situação presente, como um novo rico no Rio de Janeiro, em contraponto ao seu passado simplório em Barbacena, de modo entusiasmado, eufórico, e não sobriamente (de forma discreta, equilibrada). Nota-se essa postura na passagem em que o narrador apresenta os pensamentos de Rubião, admirado com sua nova condição: “Que era, há um ano? Professor. O que é agora! Capitalista. Olha para si [...]; e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade”.
d) Incorreta. A obra não explora um sentido místico no destino humano, mas a complexidade das relações que se estabelecem entre as pessoas. A frase citada alude ironicamente ao provérbio “Deus escreve direito (certo) por linhas tortas” para demonstrar como Rubião acabou por beneficiar-se da morte da irmã e do amigo Quincas Borba, tornando-se seu herdeiro universal.
e) Correta. Tal como apresentado no início do romance, a transformação do cômico em trágico, e vice-versa, é um elemento fundamental na construção de Quincas Borba. No trecho em questão, a tragédia da morte de Piedade e de Quincas Borba reverte-se em uma vida de riqueza e luxo para Rubião. No entanto, essa mesma “boa sorte” será, mais tarde, revertida em desgraça, com a ruína financeira, loucura e morte de Rubião.