Para responder às questões de 02 a 05, leia o trecho do livro O homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda.
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza1 no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito.
Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência — e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções.
Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo.
No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro — como bom americano — tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros.
(O homem cordial, 2012.)
1 lhaneza: afabilidade.
De acordo com o autor,
a) |
a lhaneza no trato, a hospitalidade e a generosidade são traços constitutivos da civilidade do brasileiro. |
b) |
a polidez constitui uma espécie de máscara com a qual os brasileiros continuamente se defendem da sociedade. |
c) |
a polidez observada no convívio social entre brasileiros chega quase a se confundir com a veneração religiosa. |
d) |
a lhaneza no trato, a hospitalidade e a generosidade constituem quase mandamentos impostos pela sociedade brasileira. |
e) |
a polidez constitui uma qualidade íntima dos brasileiros a se manifestar continuamente no convívio social. |
a) Incorreta. No texto, a “lhaneza no trato, a hospitalidade e a generosidade” são classificadas como traço constitutivo do caráter brasileiro, e não da civilidade.
b) Correta. Para Sérgio Buarque de Holanda, a polidez é “organização de defesa ante a sociedade” e “equivale a um disfarce”, caracterizando, assim, a máscara com a qual o brasileiro se defende, conforme afirma a alternativa.
c) Incorreta. A polidez que se confunde com a veneração religiosa ocorre na sociedade japonesa, e não na brasileira.
d) Incorreta. A “lhaneza no trato, a hospitalidade e a generosidade” são, segundo o texto, não uma imposição social, mas uma “expressão de fundo emotivo”.
e) Incorreta. O autor afirma que, na sociedade brasileira, a polidez é superficial, e não íntima.